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24 de Setembro de 2020 às 09:20

Os aspetos chatos do “flat tax”

Assim, quase 90% dos agregados podem ficar mais ou menos na mesma com um “flat tax” de 15% – depende dos pormenores. Mas só assim acontece com uma grande redução da receita fiscal, que se reflete essencialmente daí para cima e sobretudo nos 4% de famílias portuguesas titulares de maiores rendimentos.

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Dois partidos novos resolveram recuperar uma ideia velha: o “imposto chato” (“flat tax”), ou seja, a tributação do rendimento pessoal com uma única taxa. Como quase sempre acontece, a proposta é apresentada como solução milagrosa para todos os problemas do país. E como quase sempre acontece, não é bem assim.

Há um primeiro equívoco que tem a ver com a suposta “simplicidade” do “flat tax” face à complicação do nosso IRS. Acontece que a complexidade das declarações de IRS nada tem a ver com a sua taxa progressiva. Tem a ver com as regras de apuramento do rendimento (por exemplo, as despesas dedutíveis ou a separação dos diferentes rendimentos isentos ou sujeitos a taxa especial). A determinação da taxa de tributação (que é o que o “flat tax” muda) não altera as regras de determinação do rendimento. Do seu peso burocrático. O IRS não seria aliviado nem em um grama.

O segundo equívoco resulta de misturar a questão do sistema de tributação com a do nível de tributação. Para compararmos a justiça de dois sistemas, devíamos comparar dois sistemas capazes de gerar a mesma receita. Foi o que fez, segundo creio, Francisco Louçã, demonstrando que um “flat tax” puro representa uma enorme deslocação do peso dos impostos dos mais ricos para os mais pobres.

Claro que ninguém defende um “flat tax” puro. O que é geralmente apresentado é um “flat tax” com uma dedução fixa inicial. Esse imposto é progressivo (a taxa marginal é fixa, mas as taxas efetivas são crescentes com o rendimento, tendendo para essa taxa marginal). Para ser politicamente apelativo, tem de ter simultaneamente uma dedução considerável, uma taxa baixinha, e uma grande perda de receita

A Iniciativa Liberal, que apresenta algo deste género, calcula que com uma taxa marginal de 15% a perda de receita será de cerca de dois mil milhões de euros. Acho a conta irrealista (por muito otimista), mas não é possível fazer as contas sem ter todas as peças do puzzle (por exemplo, o que é que acontece às restantes deduções que hoje estão no IRS). Fiquemos então com esses dois mil milhões. Isso implica que a comparação séria a fazer é entre esta proposta de “flat tax” ou o nosso IRS progressivo com uma redução de taxas que baixasse a sua receita em dois mil milhões; ou uma redução de outros impostos ou contribuições que baixasse a receita em dois mil milhões.

Deixando de lado a questão de saber onde é que se teria de reduzir despesa em valor equivalente, vamos então à questão principal: quem é que ganha com esta redução de imposto? E para essa conta podemos recorrer às estatísticas da receita fiscal, cujo último ano disponível é 2017 (tendo presente que nesse ano o IRS tinha menos escalões e taxas em média mais altas).

Com um “flat tax” com deduções como as que são propostas, o imposto não mudaria muito para 90% dos agregados familiares. Cerca de metade (46%) não paga hoje qualquer IRS – ou porque não tem rendimentos para o pagar durante o ano ou porque, por efeito das deduções, tem um reembolso pelo menos equivalente ao que pagou. Um “flat tax” com dedução fixa poderia manter este panorama. Daí até ao topo do atual 3.º escalão, a taxa efetiva vai subindo, como iria subindo com o “flat tax” . O ritmo dessa subida varia com as condições concretas do agregado familiar (depende do número de filhos e das deduções). Em 2017, nos dois primeiros escalões (correspondentes aos 3 primeiros atuais) a taxa efetiva do IRS era em média de 1,9% no primeiro escalão e de 10,5% no segundo. Até este ponto (topo do antigo segundo escalão) temos 88,5% dos agregados familiares, que não têm grande coisa a ganhar com um “flat tax” de 15%.

Note-se que neste segundo escalão de 2017, com uma taxa média de 10,5%, a taxa marginal era 28%. As pessoas por vezes cometem o erro de pensar que o IRS que estão a pagar corresponde à sua taxa marginal – e depois comparam 28% com 15% e acham que vão ficar a ganhar. Mas a taxa média efetiva do IRS é muito inferior à taxa marginal – porque as taxas são progressivas e por causa das importantes deduções a que a maioria das pessoas tem acesso.

Assim, quase 90% dos agregados podem ficar mais ou menos na mesma com um “flat tax” de 15% – depende dos pormenores. Mas só assim acontece com uma grande redução da receita fiscal, que se reflete essencialmente daí para cima e sobretudo nos 4% de famílias portuguesas titulares de maiores rendimentos. Isso já não depende dos pormenores.

Estes 4% de famílias ocupavam em 2017 o 4.º e o 5.º escalões (correspondendo atualmente a parte do 6.º e ao 7.º escalões). As suas taxas efetivas eram respetivamente de 31,2% e 43,5%. A proposta de “flat tax” reduz essa taxa efetiva para metade no 6.º e para um terço no 7.º. Fazendo a redução proporcional das coletas, verificamos que a redução de imposto cobrado a esses 4% de agregados é de 1.750 milhões de euros. Se a proposta implica efetivamente uma redução de receita em 2.000 milhões, não sobra muito como redução de impostos para os outros 96% dos portugueses.

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