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Fernando Rocha Andrade - Professor de direito 29 de Abril de 2021 às 09:20

O crime de enriquecimento injustificado, 3.º round

A evolução legislativa demonstra que o legislador não está parado em matéria de investigação e punição dos crimes de corrupção. Não é legítimo dizer que o legislador não fez nada só porque não adotou as nossas próprias ideias.

Recentemente, um comentador americano dizia que, hoje em dia, se ganham debates mudando o significado das palavras. É o que acontece com a ideia de punir o enriquecimento “ilícito”. Como é que alguém pode ser contra a penalização de quem enriquece ilicitamente? A questão, como é óbvio, é que o enriquecimento ilícito já é punido pela nossa legislação – desde que se prove que é ilícito. Mas este pequeno pormenor de ter de provar que alguém cometeu um crime para o condenar pela prática desse mesmo crime não é uma singularidade portuguesa, mas antes um daqueles princípios que fazem parte do património das nações civilizadas.

O que se tem discutido nos últimos anos, e o Parlamento debate neste momento, é a punição de um enriquecimento de origem desconhecida – chamemos-lhe então enriquecimento não justificado – que precisamente por ser de origem desconhecida se quer presumir ilícito. É essa presunção, por contrariar o princípio da presunção da inocência, que explica que os diplomas aprovados neste sentido tenham sido declarados inconstitucionais – por duas vezes, e por unanimidade. Poderíamos, é certo, remover aquele princípio da Constituição. Ficaríamos com um direito penal cujos contornos já não são defendidos, em Portugal, desde os tempos de D. Miguel, e que caracterizam uma série de regimes políticos pouco recomendáveis por esse mundo fora. Se não se importam, eu prefiro não viver nesse país.

É possível, contudo, encontrar uma solução que vá ao encontro das preocupações expressas pelos partidários da incriminação. A solução, provavelmente, basear-se-á no facto de já existir, para um segmento de cidadãos – incluindo todos os titulares de cargos políticos – uma obrigação de declarar o enriquecimento, podendo incriminar-se a omissão ou falsidade dessa declaração. Tal incriminação – que até já existe, eventualmente de forma limitada, desde 2019 – é uma incriminação por violação de um dever e não uma presunção de um outro comportamento ilícito. O aperfeiçoamento desta solução será o ponto de chegada se o debate for feito com bom senso e não numa disputa de bater-no-peito-para-ver-quem-é-mais-contra-a-corrupção. “Que es mas macho, pineapple o knife?”, cantava Laurie Anderson em “Smoke Rings”, e são versos muito descritivos para uma boa parte das afirmações em torno deste tema.

É curioso que todo este debate venha a reboque do despacho de pronúncia de José Sócrates (porque, recorde-se, foi um despacho de pronúncia; não foi uma absolvição). Curioso porque se há facto que parece sólido em todo esse processo é a prova da origem do enriquecimento do antigo primeiro-ministro. E esse enriquecimento, naquela forma, já era ilícito (desde 2001). Esse crime prescreveu, mas não prescreveu o crime de branqueamento, que só existe porque aquela outra incriminação existia. Mesmo o prazo de prescrição já não é o mesmo – foi alterado, por lei de 2010, para 15 anos. Em síntese, nem a incriminação do enriquecimento injustificado faria qualquer diferença para aquele processo, nem existiria a prescrição com a lei que hoje temos.

Esta evolução legislativa (que foi aliás acompanhada por outras alterações em matéria de regime legal da investigação) demonstra, aliás, que o legislador não está parado e tem procurado responder ao problema da investigação e punição dos crimes de corrupção. É sempre legítimo defender outras propostas. Ilegítimo – rectius, falso – é dizer que o legislador não fez nada só porque não adotou as nossas próprias ideias. Essa atitude só se pode explicar por uma mistura de complexo messiânico e obstinação em não ler nada sobre o assunto nas últimas duas décadas.

 

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