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27 de Março de 2019 às 19:36

O machismo oculto da medida-padrão

Previsivelmente, os equipamentos disponíveis são geralmente baseados no corpo masculino e não se adaptam bem à maioria das mulheres, com efeitos negativos quer no desempenho das funções quer nos acidentes de trabalho.

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Há pouco mais de 10 anos, enquanto subsecretário de Estado da Administração Interna, tutelei dois grandes processos de aquisição de equipamentos para as forças de segurança - coletes à prova de bala e pistolas de 9 mm. Para as pistolas, ficou estabelecido que cerca de 10% deveriam estar adaptadas a ser utilizadas com a mão esquerda, porque isso corresponde aproximadamente à percentagem de pessoas que usam principalmente essa mão. No caso dos coletes balísticos não ficou definida nenhuma percentagem que tivesse em conta as diferenças anatómicas do corpo feminino, apesar de as mulheres representarem até uma percentagem superior a 10% do efetivo das forças. A isso não será estranho o facto de todos membros do Governo e todos os oficiais da PSP e da GNR envolvidos no processo serem homens. Apesar da atenção que geralmente os homens dão à anatomia feminina, não ocorreu a ninguém que essas diferenças anatómicas pudessem justificar um desenho diferente de colete.

 

Este problema não se restringe aos equipamentos das polícias. A UGT publicou há dois anos um relatório, adaptado do britânico TUC, sobre equipamento de proteção individual na indústria. Previsivelmente, os equipamentos disponíveis são geralmente baseados no corpo masculino e não se adaptam bem à maioria das mulheres, com efeitos negativos quer no desempenho das funções quer nos acidentes de trabalho.

 

Num livro recente, "Invisible Women", Caroline Criado-Perez refere um conjunto de outros exemplos em que a definição de "standards" toma em conta, não o ser humano médio, mas o macho médio, criando prejuízos ou obstáculos às mulheres nos quais muitas vezes não reparamos. Os "crash test dummies" têm tradicionalmente dimensões masculinas (o Euro-NCAP só introduziu bonecos com dimensões femininas em 2015), os carros são feitos com esses parâmetros e as mulheres sofrem mais lesões nos acidentes de automóvel. Da mesma forma, só 70 anos depois da largada da primeira bomba atómica é que uma investigadora (lá está), Mary Olson, expôs que a tolerância das mulheres à radiação é menor que a dos homens, levando a uma incidência de cancro 50% superior - e à necessidade de rever os níveis de radioatividade toleráveis.

 

Na semana passada, o Presidente da República promulgou os diplomas legais sobre representação equilibrada no sistema político e nos órgãos dirigentes da administração pública. Estas leis vão somar-se à Lei n.º 62/2017, aprovada nesta legislatura, sobre representação equilibrada entre mulheres e homens nas empresas públicas e nas empresas cotadas em bolsa.

 

É comum defender esta legislação do ponto de vista da discriminação que existe sobre as pessoas do sexo feminino no seu acesso a cargos de poder - ou seja, sob o ponto de vista do direito individual das mulheres a ocuparem esses cargos. Sendo importante, essa não é a questão fundamental. Fundamental é que, enquanto nas instâncias de decisão estiverem essencialmente homens, as situações que acabei de descrever tenderão a repetir-se, quanto mais não seja por falta de consciência das questões. Retomando uma conclusão de Caroline Criado-Perez, "o feminismo por vezes parece uma luta impossível. Há tanto para mudar, e tudo está ligado. Por onde começar?". É provável que saiba melhor por onde começar quem conhece em primeira mão os problemas. 

 

P.S. Já depois de escrever este texto veio a notícia, inesperada e brutal, da morte do João Vasconcelos. Poucos terão feito tanto pela promoção, em Portugal, da economia digital e de uma cultura de empreendedorismo. O João acreditava que Portugal podia ser o melhor país do mundo para criar um negócio, e batalhava por isso. Ficámos sem o seu entusiasmo contagiante, mas aquele é um objetivo em que vale a pena continuarmos empenhados. Ele ia gostar.

 

Deputado do PS e professor de direito

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