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[762.] "Linhas de Sangue": um anúncio contra a crítica

Os autores do anúncio a "Linhas de Sangue" quiseram fazer uma gracinha, mas acabaram revelando má consciência sobre o seu trabalho e um fundo negro que, envenenando-os, os impede de fazer melhor cinema.

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Um anúncio do filme cómico "Linhas de Sangue" divulgado na Internet constrói uma pequena ficção sobre a reacção da crítica de cinema à sua estreia. Numa sessão para a imprensa, eis três críticos todos juntinhos numa sala vazia - os críticos são vistos como um grupinho que inventa a opinião, e em matilha, pois escrevem uns para os outros. Riem-se imenso do filme, mas ao acabar a sessão põem cara séria e combinam a opinião: "Quanto é que vais dar?"; "Eu vou dar bola. Aliás, no meu jornal só dou bola". Aqueles críticos não podem sair desse círculo vicioso. Diz então uma voz off: "muitos já classificaram este filme como sendo 'uma merda' (jornal O Muitos), 'o pior filme de sempre' (wftpnews.br), 'a história mais parva de que há memória' (@therealDonaldT.)". E por aí adiante.

 

O anúncio reproduz velhos lugares-comuns sobre a crítica. Só faltou mesmo o clássico de que há críticos que criticam sem terem visto. Na minha experiência de décadas como crítico, sei que já houve (em todo o mundo) críticas medíocres, críticas malévolas, críticas escritas para os outros críticos e, até, críticos que escreveram sem terem visto os conteúdos criticados. Mas não foram nem são a Critica no seu conjunto e não são motivo para se centrar neles uma publicidade a um filme.

 

O reclame assume a superioridade de muitos criadores de conteúdos da cultura popular perante a crítica: eles criam, os críticos não (com se a crítica não fosse também um acto de criação); eles têm as "massas" do seu lado, os críticos são uns pobre miseráveis sem terem onde cair mortos, que "ninguém" lê e "ninguém" conhece. Esta publicidade anuncia a estreia do filme e quer atrair as "massas", encher as salas. Extraordinariamente, não mostra uma única cena do filme (embora seja possível vê-las num trailer). Só se vê os críticos, em quem os autores do filme e do anúncio têm uma fixação que tentam aqui exorcizar. O anúncio pretende chamar as "massas" para as salas de cinema através do desprezo pelos críticos (e certamente pela crítica em geral). A pequena ficção do reclame estabelece que, se os críticos dizem mal, vocês, malta das "massas", vão gostar, porque os críticos dizem sempre mal daquilo de que vocês gostam; fizemos este filme para vocês, "massas"; comprem bilhete e 'bora lá provar aos críticos que a força das "massas" reside no número, nós somos muitos, eles são meia dúzia, se calhar nem chega, vejam aqui, são só três!

 

Por norma, a crítica profissional é uma actividade de que os criticados não gostam - quando são visados por uma crítica negativa; prefeririam sempre elogios, e isso não é possível, pela ordem lógica do mundo: a maioria das obras criadas, em qualquer arte ou actividade, é má ou medíocre; não quer dizer que seja desprezível, quer dizer que não tem qualidades suficientes para sobreviver ao tempo; também não quer dizer que seja "má" por ser popular, pois há milénios que a cultura popular cria obras com qualidades; todavia, sem dúvida que as obras a que os especialistas (os eruditos, os críticos) unanimemente atribuem mais valor - chamemos-lhes os clássicos - são as que, desde as grutas de Altamira ou de Lascaux, resistem ao tempo, são melhores do que o próprio tempo.

Apesar de poderem sentir comichão ao ouvirem falar em crítica ou em críticos, os bons ou honestos criadores respeitam a crítica, reconhecem a sua importância e amiúde são eles mesmos críticos, o que tem sucedido com muitos realizadores de cinema. Um autor português, António Maria Lisboa, foi ao ponto de escrever na década de 1940: "Sem crítica não há arte!" Os autores do anúncio a "Linhas de Sangue" quiseram fazer uma gracinha, mas acabaram revelando má consciência sobre o seu trabalho e um fundo negro que, envenenando-os, os impede de fazer melhor cinema.

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