Opinião
[698.] Pingo Doce: "Faça da mesa um lugar melhor"
A deputada do PS Isabel Moreira escreveu um comentário indignado a respeito de anúncios da actual campanha dos supermercados Pingo Doce. Considerou-os "lamentáveis". Mais uma razão para os analisar.
Segundo a deputada, num dos anúncios, "o filho infeliz a combater [sic] o excesso de peso enquanto a família ignora o seu sofrimento e come 'mal' até se 'converter' à alimentação 'saudável'" do Pingo Doce. "Noutro, o filho [sic] de pais divorciados em casa do pai. Este serve uma panqueca [sic] ao filho [sic] que diz 'pai, sabias que a mãe não me faz panquecas?' [sic]. Não faz mal, o pai serve, porque o pai vai" ao Pingo Doce.
Uma única visão destes dois de quatro anúncios da campanha mostra como a análise de Moreira é factualmente errada e estapafúrdia. O anunciante seria louco se esta "análise" fosse possível.
Os quatro anúncios são narrativas ficcionais emotivas, sem serem piegas, de famílias contemporâneas. Ao invés de apresentar famílias apenas felizes, como é comum na publicidade, os anúncios pegam em problemas reais para os desembocar em soluções positivas em que o anunciante apenas aparece porque as refeições, "a mesa", são um ponto de encontro com alguma alegria ou felicidade. O slogan dito é "Faça da mesa um lugar melhor", quer dizer, recorrendo aos produtos do Pingo Doce, faça da mesa um lugar melhor para a família, que é central nas narrativas.
No primeiro anúncio, um rapaz obeso faz exercício sozinho; recusa um segundo bife; recusa pizza que o pai lhe estende quando vêem TV; fecha o frigorífico sem de lá tirar nada. Não se sugere que a família "ignora o seu sofrimento", pelo contrário, a família compreende uma alteração de comportamento do rapaz, que quer combater a obesidade, e adere em conjunto a essa força de vontade, quando no final, é servido peixe cozido ao jantar. O miúdo comenta que todos detestam peixe cozido, mas todos, incluindo os irmãos, mentem, dizendo que gostam, para estarem com ele na luta contra a obesidade, que passa de solitária a colectiva.
No segundo anúncio, uma mulher telefona ao marido dizendo que chegará tarde para jantar. Em montagem paralela, vemo-la a atender doentes e em transportes públicos enquanto o marido faz o jantar, trata do filho e brinca com ele em vez de o deitar até a mulher chegar a casa e ter a surpresa de jantar com eles e de o filho dizer "hoje não jantas sozinha, mãe".
No terceiro anúncio, um pai acorda a filha, que se percebe ter alguma animosidade na situação do divórcio, serve-lhe o pequeno-almoço; ela diz que, em vez daquelas torradas, a mãe lhe faz panquecas; noutro dia, ele fá-las, a filha confessa que a mãe não lhas faz e o pai apenas diz "eu sei" e sorriem. A criança entende que o amor do pai (e da mãe) por ela se sobrepõe ao divórcio.
No quarto anúncio, uma mulher mais velha faz o jantar e lava a loiça; o marido vê TV; na casa dum filho ou filha, ele vê o filho ou genro a cozinhar; noutra ocasião ele, trapalhão, mas empenhado, faz o jantar; surpreende a mulher e diz-lhe "o meu primeiro jantar. Demorou 40 anos, mas está pronto." A mulher comenta no final que o jantar "estava horrível - mas soube-me pela vida" e beija-o na boca.
Pela descrição, verifica-se que as narrativas abordam e "resolvem" questões comuns do mundo real de forma positiva: obesidade infantil, refeições em separado por causa dos horários de trabalho, animosidade dos filhos contra os pais divorciados e tarefas domésticas da exclusiva responsabilidade da mulher. As famílias têm pequenos problemas, novos ou ancestrais, que esta publicidade, com bastante trabalho e engenho, mostrou; esses problemas têm solução quando as pessoas se empenham por gostarem das outras da família. A resolução não se centra nos produtos do anunciante, que são acessório narrativo. Assim, as narrativas começam com situações "fracturantes" (!) para lhes apontar uma solução tradicional, o amor familiar, expresso à mesa, que serve de mostração do que o anunciante oferece ao mesmo tempo que serve de metáfora da família e sua união.
Enfim, se há alguma coisa de lamentável é o comentário de Isabel Moreira. E, se o comentário pode ele mesmo simbolizar alguma coisa, aflige pensar que uma deputada, e mais como ela, tratem assuntos, quaisquer que sejam, com erros factuais, um português medonho e uma ligeireza reveladora de desfaçatez e ignorância atrevida.