Opinião
[642.] Calcitrin, Cálcio +, Intermarché
A Ordem dos Farmacêuticos fez os possíveis para contrariar a venda dum produto que não se vende em farmácias, interpondo uma providência cautelar para impedir a sua publicidade.
Dificilmente resultaria, pois a publicidade é feita de forma a defender o anunciante. Deixando de lado as questões judiciais, o que impressiona nos anúncios do "suplemento alimentar" Calcitrin é não só a sua dimensão, que tantas pessoas, nas redes sociais, consideram massacrante, mas também o género publicitário. E, quanto a esse, é preciso reconhecer que a publicidade a Calcitrin é muito dirigida e eficaz.
O anúncio que motivou a reacção da Ordem dos Farmacêuticos é protagonizado pela cantora Simone de Oliveira. O anúncio simula uma entrevista televisiva. À pergunta da "jornalista", Oliveira responde o habitual, que "adora cantar", "ama Portugal, adora viver, ama os seus amigos", etc. Ao som de "corta!", os espectadores ficam a ver o pós "entrevista". Enquanto os técnicos desmontam a iluminação (enfim, fingem, dado que ela fica na mesma), a "jornalista" pergunta: "Mas diga-me, aqui entre nós, qual a razão da sua força?" Simone de Oliveira não hesita: "A resposta é Calcitrin." A resposta é, pois, dada "aqui entre nós". A ficção do anúncio simula uma entrevista e a conversa depois de desligados os microfones e as câmaras. Outros anúncios de "suplementos alimentares", como Cálcio +, à base de cálcio, também recorrem a apresentadores da televisão generalista de fluxo, como Júlio Isidro, Tânia Ribas de Oliveira e Serenela Andrade. O público-alvo dos anúncios é coincidente com o do tipo de programas que eles apresentam.
Se todos eles participam nos anúncios como actores, representam o seu próprio papel de apresentadores. Tal como no anúncio com Simone de Oliveira, pretende-se a total identificação das personagens com o seu papel de apresentadores. Estas publicidades indicam a importância que eles têm na vida de pelo menos centenas de milhares de pessoas, que os vêem quase diariamente. Os apresentadores de TV têm uma visibilidade invejável na sociedade, sendo uma característica que os sobrepõe a muitos outros protagonistas da vida colectiva e que eles mesmos e os anunciantes aproveitam para pôr a render noutras actividades, como a publicidade.
O aspecto mais relevante destes anúncios, bem como de outros que recorreram a "pessoas reais" para valorizar a marca, como os do Intermarché antes do Natal, é a simulação ou incrustação neles de realidade exterior à ficção publicitária. O anúncio com Simone de Oliveira é nisto exemplar. Os anúncios inscrevem-se num género publicitário a que podemos chamar "reality advertising" ou "publicidade de realidade". A inserção da realidade (apresentadores de "reality shows", pessoas que beneficiam de solidariedade do Intermarché) coloca cada um destes reclames entre a realidade e a ficção de forma notável: é como se não fosse ficção, é como se não fosse publicidade. Os apresentadores e a solidariedade do Intermarché a famílias (são sempre famílias) com necessidades estão ali como "mundo real" que é desvelado, apenas por acaso, por uma marca. Essa ocultação da natureza comercial dos anúncios, característica essencial da publicidade, é mais patente no anúncio Calcitrin com Simone de Oliveira: ela fala do produto como se depois de terminada a "entrevista televisiva", como se o género entrevista estivesse mais próximo da ficção do que o próprio anúncio. Mostra-se o que se oculta: é apenas "aqui entre nós", entre a "entrevistadora" e a cantora-actriz, mas é para todos verem.