Opinião
[610.] Super Bock: "Leva a amizade a sério"
Não, caro leitor, o texto que se segue nem é de Alexandra Solnado, nem de Gustavo Santos, nem de Helena Sacadura Cabral, nem de nenhum outro autor cujos livros encontra empilhados nas secções de "auto-ajuda" das livrarias.
Não, não é. Este texto - qual quê?, esta oração profana!, este sermão laico! - é, na íntegra, a lição de moral e as respectivas instruções de vida que lhe ordena uma marca de cerveja. Ora leia, se faz favor, se quiser aprender a viver a vida:
"O que é que se passa com a amizade? Se os amigos são tão importantes na nossa vida, como é que temos tão pouca vida para os amigos? Tudo serve de desculpa: o trabalho, a família, o sono, o sofá… Habituámo-nos a adiar encontros cada vez com menos caracteres, conversamos com ecrãs, rimo-nos com as teclas e fazemos likes para enganar a saudade; mas entre um 'não posso e outro' os grandes amigos vão-se tornando estranhos, o que é estranho. As grandes amizades não pedem muito, mas pedem manutenção, pedem olhares, silêncios, sintonia, piadas que mais ninguém percebe, pedem tempo, mesmo que pareça pouco. Vai sempre parecer. Não precisamos de mil amigos: precisamos de bons amigos, muito mais do que imaginamos. Vá lá! Liga-lhes e fura-lhes a agenda! Arranca-os da rotina, das desculpas, seja a que horas for! Se tiveres de pijama veste umas calças por cima, marca encontro no sítio do costume e façam o que sempre fizeram: nada. Tenham conversas que não levam a lado nenhum, contem as mesmas histórias de sempre, mas estejam juntos. Está na altura de pousarmos o telefone e levantarmos o copo. Se não puderes hoje, vai amanhã, mas vai mesmo! Se a vida conspira contra a amizade, conspiremos juntos para a defender. Super Bock. Leva a amizade a sério."
Enquanto a voz-off lê este texto com intensidade dramática, percorrem o ecrã dezenas de imagens de gente só, que comunica por aparelhos electrónicos, que chora na cama sem companhia, e que, depois, seguindo as ordens da cervejeira, hossana!, renasce para a vida social em co-presença e fica muito feliz.
Esqueçamos que a cervejeira Unicer, da Super Bock, também está a comunicar connosco tal como lamenta no texto, através de ecrãs. E esqueçamos que, se o mesmo texto fosse adaptado a um anúncio de telecomunicações, os hossanas diriam que os telemóveis, os teclados e os ecrãs servem para reforçar a amizade.
Centremo-nos antes no sentido do texto, que retoma com drama uma campanha cómica da mesma marca, há quatro anos, com o slogan "Super Bock puxa pela amizade". Desta vez, a Super Bock cria um sentimento de culpa no espectador: diz-lhe melifluamente "és culpado de não cultivar a amizade" para depois usar o imperativo por diversas vezes ("liga-lhes!", "arranca-os da rotina!", "marca encontro!", etc). A ideia de culpa não é interpretação minha, está no texto ("tudo serve de desculpa" para ti: "o trabalho", esse malandro, "a família", essa chata, etc).
Mas, no remate do anúncio, a solução das soluções não é apenas ter-se forças para reavivar a amizade, é antes consumir Super Bock: "Está na altura […] de levantarmos o copo". Qual? O da marca, que se vê nesse momento no ecrã. No final, o slogan confirma.
Note-se que o slogan tanto pode ter dois pontos como não: ora "Super Bock. Leva [tu] a amizade a sério", ora a "Super Bock leva a amizade a sério." Nos anúncios de imagem fixa, o logótipo com o nome da marca também surge antes do slogan, dando assim continuidade aos dois elementos verbais. Fica claro que, de facto, a Super Bock leva a amizade dos consumidores a sério, porque, quanto mais eles se encontrarem com amigos "no sítio do costume" para não fazerem nada, como o texto lhes ordena, maior é a probabilidade de fazerem alguma coisa a sério: beber cerveja.