Opinião
[502.] Heineken, Nivea: demasiada ficção na realidade
A Heineken tem um anúncio de mais de três minutos tendo por narrativa entrevistas de emprego para a própria empresa. Até aqui tudo bem: porque não mostrar a política de recrutamento? Mas a realidade acaba aí: as entrevistas, as próprias entrevistas com os candidatos, foram concebidas como reality shows, isto é, como ficções filmadas em jeito de realidade.
Partindo do justo princípio de que as entrevistas de emprego tendem a repetir as mesmas perguntas e respostas preparadas, sendo difícil escolher entre 1700 candidatos, a anunciante e a agência de publicidade engendraram situações ficcionais para pôr à prova a rapaziada candidata, situações inspiradas em momentos do futebol, de que a Henneken é patrocinadora.
Primeira: o entrevistador vai buscar o candidato ao hall de entrada dando-lhe a mão, como se faz no início dos jogos com crianças.
Segunda: o entrevistador finge que tem um AVC ou coisa do género, esperando-se assistência por parte do candidato, como sucede aos jogadores feridos no jogo.
Terceira: finge-se um alarme de incêndio e um homem tem de saltar para o pano dos bombeiros, esperando-se que os candidatos se lhes juntem para esticar o pano.
Os candidatos não sabem que é ficção, embora seja possível que um ou outro tivessem percebido a marosca ficcional.
No final, o candidato que a Heineken considerou apropriado é convidado para um jogo de estádio cheio e, quando está no meio do relvado agitando o pano com o símbolo da Championship, um ecrã gigante anuncia que ele ganhou o emprego.
Impressiona a publicidade de guerrilha, mas mais ainda que as próprias entrevistas — isto é, do puro domínio da realidade — tivessem sido ficcionadas sem o conhecimento dos entrevistados. Trata-se, a meu ver, de falta de ética empresarial e de responsabilidade social. Nada sabemos do "resto", porque a publicidade só diz o que quer: se os outros candidatos aprovaram o processo quando souberam da mentira, se permitiram o uso das suas imagens, se foram pagos — como actores — pela sua performance no anúncio. Não sabemos sequer o que é real e o que é ficção: desconhecemos se o vencedor foi efectivamente escolhido pela sua performance nas três mentiras, desconhecemos se os outros foram efectivamente candidatos ou se são actores e se toda a construção do anúncio é ficcional, apenas com o elemento de realidade no candidato escolhido e na cena do jogo de futebol.
Outro anúncio de guerrilha, da Nivea alemã, é ainda mais repugnante no abuso de "pessoas normais" para promover um produto — no caso de o reclame ser, e assim parece, uma "advertising reality" como está na moda (este e o da Heineken disponíveis aqui: http://mashable.com/2013/02/19/the-worst-job-interview-ever-heineken/). Numa estação de transportes públicos, uma a uma diversas pessoas são fotografadas sem saberem; imprimem-se no momento jornais falsos dizendo que a pessoa é perigosa e procurada pela polícia; nos televisores, passa um noticiário falso com a mesma informação; chegam dois polícias junto da pessoa; abrem uma mala, e lá dentro está um desodorizante Nivea contra o stress. Uma gracinha.
No dia em que alguém morrer com um ataque de coração — à séria, não a fingir como o entrevistador do anúncio da Heineken — veremos qual o futuro da publicidade de guerrilha. A guerrilha, no mundo real, mata. E esta publicidade é de guerrilha precisamente porque age no mundo real de pessoas desprevenidas. É o modelo "candid camara", ou "apanhados", que a TV americana criou há mais de 50 anos, aplicado à publicidade.
Nos jornais e blogues dedicados à publicidade este tipo de acções de guerrilha comercial é quase sempre apreciado, porque se valoriza o entretenimento, transformado em valor supremo da sociedade do espectáculo, e porque a mistura de ficção e realidade é a actual forma de dar o máximo realismo à propaganda publicitária. Serei eu à antiga? Vejo vários problemas éticos neste género de promoção. Recordo que na primeira sociedade do espectáculo, a Roma imperial, os actores encarnando personagens que morriam nas peças trágicas eram substituídos no último momento por condenados à morte que eram assassinados ali, no palco, como se fossem eles as personagens condenadas. É realidade a mais na ficção, e ficção a mais na realidade.
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