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26 de Maio de 2021 às 09:20

Feliz 1984

Ainda há qualquer coisa de romântico na forma como vivemos o mundo. É como se conceitos abstratos como “honra”, “a palavra de um homem” ou “o seu depoimento ficará para os livros de história” ainda fizessem sentido para todos. Não faz. Nunca fez, em boa verdade.

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Por uma daquelas coincidências do destino, duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), uma em Portugal e outra no Brasil, tiveram mentirosos contumazes como inquiridos, quase em simultâneo. Tanto lá como cá, os parlamentares incumbidos em fazer perguntas ficaram desorientados com a total desfaçatez das suas testemunhas.

Ainda há qualquer coisa de romântico na forma como vivemos o mundo. É como se conceitos abstratos como “honra”, “a palavra de um homem” ou “o seu depoimento ficará para os livros de história” ainda fizessem sentido para todos. Não faz. Nunca fez, em boa verdade.

O visionamento dessas duas CPI serve-me para confirmar a ideia de que vivemos num mundo paradoxal. A lógica das redes sociais e das caixas de comentários das publicações online ganhou pernas e braços e com isso foi para as ruas.

Essa mesma lógica (ilógica) tornou-se eleitora. Vota em candidatos na qual se revê. No poder, eles existem para provar que as suas teses são a verdade, mesmo que sejam mentiras ou exageros. Assim, naturalizou-se aquilo que George Orwell, no seu livro “1984”, batizou de novilíngua.

Na novilíngua, o Ministério da Paz é o que promove a guerra. O Ministério da Verdade espalha mentiras. “Negrobranco” é uma palavra que expressa o sublime paradoxo: nada é negro, nada é branco, pois tudo é negro e tudo é branco, pois o que é branco é negro e o que é negro é branco, a depender do que diz o Grande Irmão.

Isso não tem nada a ver com ideologias à direita ou à esquerda. O próprio Orwell escreveu “1984” para criticar duramente o estalinismo. O mundo paradoxal é profundamente contrário às ideias, sejam elas do espetro político que forem. O mundo paradoxal é contra o pensamento, o raciocínio, a ciência, a academia, os intelectuais.

Paradoxalmente, lá está, há muitos intelectuais e académicos a levantar a bandeira do mundo paradoxal. O negacionismo em relação à pandemia é apenas a demonstração mais recente (e evidente) de gente burra a dizer burrices com um ar de extrema sabedoria.

Neste momento está a ocorrer no Brasil um dos maiores crimes contra a humanidade dentro do espaço lusófono em tempos modernos. Fico triste ao perceber que o que lá se passa incomoda muito pouco por cá (mas, concedo: a distância entorpece as emoções em relação às tragédias; o que acontece na aldeia dos outros choca menos do que o que ocorre na nossa).

O que me deixa verdadeiramente atónito é saber que uma grande parte da população brasileira não se comove nem um pouco com os quase 500 mil concidadãos mortos pela covid (em números oficiais). Para 30% dos brasileiros morte é vida, mentira é verdade, loucura é sanidade.

Nos EUA não é diferente. Cerca de 30% dos americanos recusam a vacina por alegarem que o “remédio” é o veneno. Na Turquia, na Hungria, na Polónia, quanto mais opressor for o governo mais a maioria daquelas sociedades sente-se bem.

O grande problema da humanidade não é político. É linguístico. Quando Hitler e Goebbels pilotaram a propaganda nazi, montaram uma eficiente máquina de trocar os significados das palavras, os sentidos das coisas, as lógicas dos pensamentos, as sensações das emoções. Deu no que deu. Parecia que o mundo havia aprendido a lição. Não parece mais.

Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar Bertrand Russell: “Um dos paradoxos mais dolorosos do nosso tempo reside no facto de serem os estúpidos os que têm a certeza, enquanto os que possuem imaginação e inteligência se debatem em dúvidas e indecisões.” n

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O negacionismo em relação à pandemia é apenas a demonstração mais recente (e evidente) de gente burra a dizer burrices com um ar de extrema sabedoria.
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