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12 de Fevereiro de 2019 às 19:10

A crença no descrer

"Vice" traz-nos a história possível sobre Dick Cheney, uma entidade parda que ajudou a moldar o mundo como o conhecemos durante décadas a fio.

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"O mundo é ilusão, a natureza é ilusão. Matéria é miragem, tudo é impermanente. Até a comida é apenas ilusão", disse o deus Shiva, num dia em que estava mais filosófico do que o costume.

 

Annapurna, a sua mulher, ouviu e não gostou. Se tudo era ilusão, inclusive ela, que Shiva se virasse sozinho. Zangada, saiu a bater portas metafóricas e desapareceu do universo por uns tempos.

 

A coisa complicou. O desequilíbrio provocado pelo sumiço da deusa levou a que o tempo parasse, as estações desaparecessem e com isso também as épocas de plantio e colheita. O mundo ficou sem comida e a fome daí resultante não teve nada de ilusória.

 

Quando já estava fraco e faminto, Shiva soube que Annapurna tinha montado uma cozinha para alimentar os que acreditavam nela. Foi lá com a sua taça vazia e pediu comida. Desculpou-se: "Agora percebo que o mundo material, assim como o espiritual, não pode ser menosprezado e considerado ilusório."

 

Estava dentro de um cinema da NOS, no shopping Amoreiras, quando me lembrei dessa história. Não, não era porque faltava-me pipoca e estava esfaimado. Ao contrário, estava bem jantado e ansioso para ver, em pré-estreia, o filme "Vice", candidato a 8 Oscars.

 

"Vice" traz-nos a história possível sobre Dick Cheney, uma entidade parda que ajudou a moldar o mundo como o conhecemos durante décadas a fio. O filme é ótimo, mais do que recomendável. E traz uma narrativa que serve de contraponto ao introito deste texto.

 

Logo no primeiro terço do filme, um ainda jovem Chenney pergunta ao chefe, Donald Rumsfeld, no que eles, enquanto políticos, acreditavam. Rumsfeld teve um ataque incontrolável de risos. Nós, na plateia, também rimos. Um riso nervoso ao constatar que somos liderados por gente sem convicção alguma, gananciosos sem lei, que só pensam no que é material.

 

"Vice", no seu cinismo assumido, guia-nos em direção à descrença absoluta. Não sei se isso é necessariamente mau. Ao menos, saímos da sala de projeção mais informados do que quando entramos. A ignorância é sempre o pior de todos os defeitos.

 

Por ironia, a primeira palavra que aparece no ecrã quando assistimos "Vice" é justamente "Annapurna". Explico: este é o nome da produtora que bancou a película.

 

Sendo conhecedor da lenda, passei as duas horas restantes à espera de uma qualquer personagem que aparecesse para trazer um pouco de luz às trevas do enredo.

 

Mas, como estamos a falar de uma longa baseada numa história real, não há redenção. É como se Shiva e Annapurna tivessem dado há muito de frosques. Estamos cá na Terra a sós, perdidos, entregue aos bichos, ou melhor, aos homens. E que homens...

 

Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar Millôr Fernandes: "Acreditar que não acreditamos em nada é crer na crença do descrer".

 

Publicitário e Storyteller

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