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Natália para o Panteão!

Certa vez, a um preopinante que lhe fizera reservas, e que, dias depois, a cumprimentou com efusão e reverência, mirou-o de alto a baixo e gritou: "Você não passa de um verme! Está despedido da minha convivência!"

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"Egoísta", de que recebi, agora, o número 53, é um regalo de edição, pelo primor da execução gráfica, pela originalidade do conceito, pela excepcional qualidade da organização, do melhor que se produz na Europa. O bom gosto de Henrique Cayatte alia-se aos cuidados nas escolhas dos ilustradores. A promoção desta notável revista deve-se aos Casinos do Estoril, de Lisboa e da Póvoa, o que levou um amigo meu a dizer, "afinal o dinheiro da batota serve para alguma coisa útil."


Esta edição que tenho nas mãos traz desenhos admiráveis de um artista incomum, Francisco Simões, que desenha mulheres como nenhum outro, pela criatividade, pela leveza do traço e pela beleza da intenção. Simões surpreende sempre pela singeleza da criação e pela originalidade da procura, num tema que é o seu, a mulher na sua imperiosa grandeza.


Estas qualidades atraem-se sempre, nesta revista de excepção, e o número actual mais ainda porque inclui um poema belíssimo de Natália Correia, e me fez lembrar a querida amiga, com quem estive, no Botequim, na madrugada em que morreu, horas depois. Natália é uma mulher de superior distinção, poetisa imensa e prosadora e investigadora das maiores do nosso país. Basta o ensaio sobre o barroco, de que é autora, e editado num volume da Moraes para se aquilatar da sua categoria intelectual.


Mas a Natália possuía defeitos graves no universo cultural povoado de mesquinhez: não era invejosa, dizia na cara de quem quer que fosse aquilo que pensava, era arrebatada, por vezes inconveniente, mas sempre e sempre altiva, independente, corajosa e livre. Gostávamos muito um do outro, como pode ser testemunhado no livro "O Botequim da Liberdade", de Fernando Dacosta, sobre a última grande tertúlia de Lisboa, onde por vezes se reuniam aqueles que mereciam a pena ver e ouvir no mundo cultural e político. Mas a Natália tinha sempre a última palavra, e não permitia a mais leve impertinência. Certa vez, a um preopinante que lhe fizera reservas, e que, dias depois, a cumprimentou com efusão e reverência, mirou-o de alto a baixo e gritou: "Você não passa de um verme! Está despedido da minha convivência!"


Tinha um gosto pela liberdade, o que a levou a incursões perigosas nos domínios da palavra libérrima. Grande leitura, grande curiosa dos fastos e dos feitos, era um consolo ouvi-la falar de episódios da História, e das tendências religiosas que não escamoteava. O poema da Natália, também sobre anjos, tema da revista "Egoísta", é o seguinte:


"Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
Creio no engenho que falta, mais fecundo, de harmonizar as partes dissonantes,
Creio em tudo que é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
Creio nos deuses de um astral mais puro,
na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
Creio no incrível, nas coisas assombrosas, na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de oiro. Amén..."


Natália Correia anda esquecida pelas conveniências do momento e pela qualidade do seu carácter. Lembro-a aqui, por intermédio da "Egoísta." E lanço este grito de alerta: Natália Correia no Panteão! 

 

 

b.bastos@netcabo.pt

 

 

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