Opinião
Na morte de Serafim Ferreira
Nunca se queixou, nunca lamuriou, conquanto as dificuldades fossem grandes. Lançava-se ao trabalho com a força e a persistência de quem não quer ser derrotado.
O último grande militante da literatura, e da cultura de uma forma geral, morreu na quarta-feira. Chamava-se Serafim Ferreira, tinha 75 anos, e passou a vida a falar dos outros, a escrever dos outros, a promover os outros. Gostava muito deste meu amigo generoso e límpido nos seus afectos como nas suas desavenças.
Durante anos a fio fizemos tertúlia numa tasca à entrada das Escadinhas do Duque, as Galegas, com Herberto Hélder, António José Forte, Luís Pignatelli, António Carmo, José Carlos González, Manuel da Fonseca, Fernando Gusmão e por onde passava Zeca Afonso, já muito doente. Alguns desses haviam estado em conspirações, e todos nos estimávamos e respeitávamos, independentemente das piadas a uns e a outros.
Serafim, a certa altura da vida, era muito parecido com Balzac, o que o divertia e animava. No período revolucionário, editou livros condicentes com o tempo, sem nunca deixar de escrever, com generosidade e brio, daqueles que considerava dignos de serem conhecidos. O acervo de edições por si chanceladas é extremamente importante e revela um homem livre, muito culto e informado, despreconceituoso, mas com as suas admirações pessoais e simpatias fundas. Por exemplo: Vergílio Ferreira, de quem chegou a dactilografar manuscritos; José Marmelo e Silva, o grande esquecido, cuja obra nunca deixou no limbo; ou Aureliano Lima, escultor e poeta maior. Recuperou cartas e pequenos artigos de escritores "que ninguém lia", mas que ele amava, e isso é que o importava.
Livros, livros e mais livros; artigos, crónicas, ensaios, traduções e mais traduções, para arredondar a conta ao fim do mês. Com Orlando Neves foi director literário do Círculo de Leitores, promovendo sempre e sempre estimulando os seus camaradas nos períodos mais tristes das suas vidas. E dispôs ainda de tempo para actividades políticas. Nunca se queixou, nunca lamuriou, conquanto as dificuldades fossem grandes. Lançava-se ao trabalho com a força e a persistência de quem não quer ser derrotado.
A certa altura, o poeta João Apolinário arranjou-lhe emprego numa companhia de seguros, e lá foi Serafim Ferreira ao trabalho, com o entusiasmo de sempre, que a necessidade aguça e o zelo estimula.
Num período da vida cultural portuguesa, juntou-se a Alfredo Margarido, Artur Portela Filho, Mário Dias Ramos, constituindo-se como fazendo parte do "novo romance" português, de marca francesa, que suscitou um pequeno atrito sem importância de maior, a não ser uma acusação de plágio, denunciada, nas colunas do Diário Popular por Tomás de Figueiredo, e cujo alvo era Alfredo Margarido, escarmentado publicamente com violência e sarcasmo.
Mas Serafim Ferreira era outra loiça. E a necessidade de trabalhar com honra e dignidade pertencia ao escopo da sua integridade. Para o amigo comum, Carlos da Veiga Ferreira, um dos grandes editores nacionais, fundador da Teorema, traduziu autores criteriosamente escolhidos, como era timbre da chancela.
Há tempos, António Carmo, outro da mesma estirpe, informou-me de que o Serafim Ferreira estava gravemente doente. Fiquei de saber como. Não mais o conversei. E, agora, a filha dele disse-me da morte do meu amigo. De quantos anos, de quantos?
A evidência é que isto tudo se está a tornar demasiado insuportável. E a decência, cada vez mais, cede o lugar à infâmia.