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21 de Janeiro de 2016 às 19:33

Mercados à deriva num mar de detalhes

É grande a tentação de considerar que os efeitos da desaceleração da China ficarão circunscritos aos mercados emergentes e ao setor industrial global.

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Os mercados financeiros internacionais começaram o ano novo aos tropeções. Nenhuma classe de ativos de risco foi poupada. O índice acionista MSCI World, que agrega as maiores empresas mundiais, está 20% abaixo do fecho de 2015, o petróleo caiu para níveis não observados desde 2003 e as taxas de juro das obrigações de maior risco dispararam. Sabia-se que 2016 ia ser um ano desafiante, mas poucos esperavam que começasse de forma tão inauspiciosa. É certo que os analistas estavam cientes de que existiam focos de preocupação em torno da China e demais economias emergentes, bem como da evolução dos preços das matérias-primas. Mas também é verdade que o consenso apontava para que a maioria dos países desenvolvidos estivesse imunizado contra esses riscos, numa narrativa assente nos seguintes contornos. Na Europa, o teor expansionista da política monetária do BCE iria relançar a procura interna, enquanto a fraqueza do euro mitigaria o prejuízo inerente à elevada exposição das exportações da UEM às economias emergentes. Nos EUA, a robustez do mercado de trabalho e os baixos níveis de inflação continuariam a suportar o consumo privado, impulsionando o setor dos serviços, compensando a debilidade imposta pela queda do preço do petróleo e pela apreciação do dólar à indústria norte-americana. Perante a solidez das duas principais áreas económicas mundiais, os problemas advindos da China ou do setor das matérias-primas pouco mais seriam do que uma constelação de detalhes incómodos, incapazes de travar a boa progressão dos mercados financeiros ocidentais. Tanto assim, que a Reserva Federal dos EUA achou que chegara o momento de começar a normalizar a sua política monetária, após sete anos de taxas de juro fixadas a zero, começando, desse modo, a reverter as golfadas de liquidez que tanto têm contribuído para o bom desempenho dos ativos de risco. Que maior sinal de confiança poderiam os investidores desejar? Se esta narrativa estiver correta, a sacudidela com que o ano novo despontou rapidamente se dissipará. Se não estiver…

 

Os ciclos económicos não são homogéneos. Há sempre países e setores que lideram as transições. É grande a tentação de considerar que os efeitos da desaceleração da China ficarão circunscritos aos mercados emergentes e ao setor industrial global. Porém, descartar o arrefecimento do principal motor do crescimento mundial nos últimos anos como um detalhe ou desprezar o sinal recessivo emanado pela indústria, soa a complacência.

 

As ramificações da história chinesa na evolução das economias desenvolvidas são de índole real e financeira. Quanto à primeira, o colapso das importações originárias na China tem um impacto direto significativo no Japão e na Alemanha, uma vez que ambos são grandes produtores e exportadores dos bens de capital que alimentaram a industrialização do mundo emergente. Nos EUA, a queda do preço do petróleo colocou em recessão o setor extrativo, um dos mais dinâmicos dos últimos anos. Por outro lado, é expectável que a crise dos emergentes se sinta no mercado residencial das principais cidades das costas Leste e Oeste norte-americanas, cujas bolhas imobiliárias foram em larga medida insufladas pelos ricos dos países pobres. Quanto ao efeito financeiro, basta notar que a política monetária se tornou muito mais restritiva nas economias emergentes devido à necessidade de controlar a pesada depreciação sofrida pelas respetivas moedas, o que significa que a principal fonte do crescimento do crédito global não só desaparece, como passa a sugar liquidez do sistema financeiro internacional. Por si só, este fenómeno constitui um enorme obstáculo à sustentação do crescimento mundial.

 

Para os mais otimistas estes efeitos serão secundarizados pelo despertar da força dessa mítica entidade que é o consumidor americano. Se o mercado de trabalho dos EUA se mantiver dinâmico, o que ocorrerá enquanto durar a expansão do setor dos serviços, que representa 80% do PIB, nada de muito grave poderá acontecer à maior economia do mundo. Acontece que não reconhecer a interligação da indústria e dos serviços é um erro, nem que seja pelo facto de grande parte dos serviços integrarem a cadeia de produção dos bens, que começando a "vida" nas fábricas, são depois objeto de múltiplas manipulações do setor terciário: transporte, logística, marketing, serviços financeiros, jurídicos, consultoria, distribuição. Se o setor transformador dos EUA permanecer em recessão, menos bens serão produzidos, o que se repercutirá na atividade dos serviços.

 

Em suma, se a narrativa do consenso for um equívoco, então o ciclo de crescimento mundial poderá estar a entrar numa fase descendente. Nesse caso, a inversão da política monetária da Reserva Federal terá correspondido à remoção do derradeiro suporte à valorização dos ativos financeiros, deixando os mercados sujeitos às intempéries do mar dos tais detalhes.

 

Chief economist do Millenniumbcp

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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