Opinião
Impostos
É importante que decisões em matéria fiscal sejam tomadas ponderadamente, com base em análises quantificadas, e não com a pressa de quem soma portas e janelas. Neste sentido, academia, comunicação social e Parlamento têm a responsabilidade de contribuir para rasgar novas janelas de oportunidade.
Os impostos, na sua evolução, acompanham e moldam, simultaneamente, a vida social e a actividade económica.
Em Junho de 1789, em França, os Estados Gerais aboliram os impostos – todos os impostos –, mas apenas para designar as receitas fiscais como "contribuições", um nome mais consonante com o espírito revolucionário da época. Em Novembro de 1798 os impostos voltaram a aparecer no léxico francês, através de um tributo sobre o património imobiliário – apresentado, obviamente, como "provisório" – designado por "imposto das portas e das janelas". Tratava-se de um imposto indiciário, copiado do "imposto sobre as janelas" que tinha sido introduzido em Inglaterra no final do século XVII.
À medida que a população se transferia dos campos para as cidades, tornava-se necessário, por uma questão de equidade, taxar não apenas as propriedades rurais, mas também as propriedades urbanas. Ora, no início, não era fácil encontrar métodos rigorosos e expeditos de medir o valor dos prédios urbanos (isto é, a base de tributação), pelo que o legislador inglês optou por uma aproximação, um método indiciário que consistia em considerar o valor do prédio proporcional ao número de janelas. O legislador francês refinou a fórmula tributária, acrescentando-lhe portas. Com este método, os funcionários do Fisco não precisavam de formação económica sofisticada, bastava-lhes percorrer as ruas e ir contando o número de janelas e portas de cada prédio.
A Revolução Francesa influenciou, pelas ideias e pelas armas, o ordenamento administrativo e fiscal da Europa continental, pelo que o "imposto das portas e das janelas" foi introduzido em toda a parte, da Península Ibérica à "Mitteleuropa".
Todos os impostos influenciam os comportamentos dos sujeitos fiscais, embora nem sempre as alterações comportamentais sejam as esperadas pelo legislador; e, frequentemente, as alterações comportamentais têm consequências não antecipadas que vão muito além do simples impacto fiscal. Foi o caso, nomeadamente, do imposto sobre as janelas. A reacção dos proprietários de prédios urbanos à introdução deste imposto foi, logicamente, a redução do número de janelas, quer fechando janelas em prédios existentes, quer instruindo os arquitectos no sentido de minimizarem janelas em novos prédios. A redução do número de janelas teve como consequência não apenas uma redução da receita fiscal, face ao valor esperado, mas também uma menor ventilação das habitações, logo uma acentuada degradação da qualidade do ar interior, assim como uma menor exposição à radiação solar. O número de doenças aumentou, assim como a sua intensidade, tendo o raquitismo assumido proporções alarmantes em Inglaterra, no início do século XIX, na sequência de um aumento substancial do imposto sobre as janelas. Face à crescente oposição pública e às graves consequências sobre a saúde pública e sobre a produtividade, o legislador inglês aboliu este imposto em 1851. Em França, o imposto "provisório" de 1798 só foi definitivamente abolido em 1926.
Entretanto, libertada da ocupação francesa, a Holanda resolveu substituir o imposto sobre as portas e as janelas por um imposto sobre as chaminés. Esta alteração teve um impacto sobre a saúde duplamente positivo: por um lado, ao permitir repor as janelas, aumentou a ventilação e a exposição solar; por outro lado, reduziu a queima de lenha para aquecimento das habitações, o que também contribuiu para melhorar a qualidade do ar interior (além de reduzir o consumo de energia). Os mesmos fiscais passaram a contar chaminés em vez de contar portas e janelas, o que permitiu reduzir os custos de adaptação do sistema fiscal holandês à nova tributação.
Actualmente, graças a ferramentas como o Google Earth, seria possível contar portas, janelas e chaminés comodamente instalados em frente a um computador. Mas, entretanto, as autoridades tributárias desenvolveram métodos de avaliação de imóveis menos primitivos, pelo que o vidro se expande nas fachadas, também em Portugal – mesmo quando corresponde a janelas que não se abrem, sujeitas à ditadura do ar condicionado importado irreflectidamente de outras paragens, comprometendo assim o desempenho energético e ambiental dos edifícios. Mas essa é outra história...
Recorde-se um exemplo mais recente de efeitos inesperados de uma reforma fiscal: nos anos 1990, muitos países europeus, incluindo Portugal, alteraram a tributação dos combustíveis para incentivar a difusão dos automóveis com motor diesel em detrimento da gasolina; o objectivo era reduzir as emissões de CO2 no sector dos transportes. A "dieselização" permitiu reduzir um pouco as emissões de CO2, mas aumentou muito a emissão de partículas nocivas, provocando frequentes situações de crise em várias metrópoles (incluindo Lisboa), com consequências extremamente negativas para a saúde pública e para a produtividade. Por tal razão, vários países europeus iniciaram já a marcha-atrás na "dieselização".
O aumento da poluição do ar na China, e em particular o aumento de partículas cancerígenas na atmosfera como resultado do aumento contínuo, não apenas dos motores de combustão, mas também da combustão de carvão nas centrais eléctricas, acarreta custos enormes, tanto pela redução da esperança de vida como pelo aumento de doenças crónicas, com consequente aumento de custos do sistema de saúde e redução da produtividade. Algumas empresas ocidentais com filiais na China começaram a pagar "subsídios de poluição" aos empregados ali destacados e a equipar as suas residências com purificadores de ar (a venda destes aparelhos tem aumentado exponencialmente, situando-se em cerca de um milhão por ano). Além disso, as partículas viajam pelo ar, atravessando a península da Coreia e atingindo o Japão, com graves consequências para a saúde pública nestes países e para a saúde das relações político-diplomáticas entre a China e os seus vizinhos. Com a poluição do ar e com as alterações climáticas, a geopolítica transforma-se, cada vez mais, em meteopolítica. Consciente da importância desta questão, a China acaba de negociar com a União Europeia um programa de cooperação tendo em vista a adopção de um mercado de carbono semelhante ao Europeu. O chamado CELE (Comércio Europeu de Licenças de Emissão) é um mecanismo de mercado introduzido na União Europeia em 2003 para as grandes instalações emissoras de gases de efeito de estufa.
Em 2014, a Comissão para a Reforma da Fiscalidade Verde, que tive a honra de presidir, propôs "a criação da tributação do carbono no sector não CELE, sob a forma de um adicionamento, com uma taxa indexada ao preço do carbono no sector CELE, acompanhada por uma revisão das isenções em sede de ISP". Para informação: o sector não CELE representa cerca de metade das emissões de CO2 em Portugal. Esta proposta, juntamente com as restantes 39 constantes do Anteprojeto de Reforma da Fiscalidade Verde, foi objecto de ampla consulta pública (durante a qual foram recebidas, analisadas e respondidas pela Comissão 111 contribuições escritas) e as análises de impacto subjacentes foram oportunamente publicadas. A proposta era explícita no objectivo e no método, e foi criticada com veemência por vários agentes económicos, como pode ser facilmente comprovado, consultando as contribuições enviadas à Comissão e por esta publicadas. Não faz, portanto, qualquer sentido chamar a esta proposta – que foi aceite pelo Governo e aprovada pelo Parlamento – uma impostura. Na verdade, dificilmente ela poderia ter sido mais clara na formulação, mais directa na justificação, mais exaustiva na quantificação dos custos associados e da sua repartição pelos vários sujeitos. Este último ponto é muito importante porque, como sublinhava o relatório final da Comissão: "A diferença entre uma reforma fiscal bem concebida e implementada e uma reforma fiscal falhada reside no facto de a primeira produzir ganhadores e perdedores intencionalmente, enquanto no segundo caso ganhos e perdas são acidentais, não intencionais." Portanto, só mesmo quem não leu o texto desta proposta pode ver nela uma intencionalidade enganosa, uma impostura.
Questão diferente é a da "reciclagem" da receita fiscal produzida pela reforma da fiscalidade verde, e pela tributação do carbono em particular. A Comissão envolveu quatro equipas de economistas na análise das melhores estratégias de utilização da receita fiscal adicional, cujos resultados foram publicados, e indicou claramente, no relatório final, que "só uma reforma da fiscalidade verde que inclua uma estratégia de ‘reciclagem’ adequada permite atingir um triplo benefício (também referido na literatura como ‘triplo dividendo’): melhorar o desempenho ambiental, contribuir para o crescimento económico e, por essa via, melhorar a situação das finanças públicas, promovendo a consolidação orçamental."Apesar de a proposta da Comissão evidenciar claramente estratégias virtuosas e estratégias contraproducentes, Governo e maioria parlamentar optaram por uma das últimas.
Em Portugal, são ainda raras as iniciativas legislativas acompanhadas da apresentação de um estudo de impacto económico. Em matéria fiscal, dada a inexistência, há muito tempo, de ferramentas adequadas no interior da Administração Pública, as reformas fazem-se, desfazem-se e refazem-se sem análise de impacto económico. Quando surge uma proposta de reforma fiscal sustentada numa análise de impacto, como foi o caso da fiscalidade verde, como reage o decisor político? Ignorando a análise e escolhendo uma das estratégias que objectivamente, como demonstrou a análise de impacto, pior serve o interesse público.
Numerosos relatórios internacionais colocam a imprecisão e a instabilidade do sistema fiscal entre os principais factores de perda de competitividade da economia portuguesa. Por isso é importante que decisões em matéria fiscal sejam tomadas ponderadamente, com base em análises quantificadas, e não com a pressa de quem soma portas e janelas. Neste sentido, academia, comunicação social e Parlamento têm a responsabilidade de contribuir para rasgar novas janelas de oportunidade.
Presidente NEWES, New Energy Solutions