Opinião
Francisco Nicholson
Francisco Nicholson, que foi agora embora, era um homem de lealdades, que se encolerizava com as traições e com as falhas de amizade.
Tínhamos todos pouco mais de 20 anos, a idade do mundo, e, de uma maneira ou de outra, queríamos modificá-lo. Um fim de tarde de Junho, 1960, encontrámo-nos no Parque Mayer, local de grandes afectos. Meses antes, em 10 de Abril, tinha sido despedido de O Século, por envolvimento na Revolta da Sé. Fiz o que tinha de fazer, e está tudo dito. Quem eram esses rapazes? O Francisco Nicholson, Artur Portela Filho, Alexandre Vieira, mais dois ou três. Naquelas épocas, os jornalistas tinham com os actores relações de proximidade, e muitos deles chegaram a traduzir peças ou a trabalhar nos textos publicitários dos teatros. Como na canção de Marcel Mouloudji. "Un jour tu veras", levados pelo acaso fomos para Alfama, às festas populares. Abreviando razões: na Adiça, conheci uma rapariga muito esbelta, com quem haveria de casar e viver até hoje: durante cinquenta e mais anos, ter filhos e agora netos. Cada um daqueles rapazes foi à vida que lhe estava destinada, porém, com o Nicholson, as afinidades electivas mantiveram-se. Encontrávamo-nos sempre, ao sabor das circunstâncias e era rara a vez em que o meu amigo não relembrava o episódio do meu namoro e casamento. "Sou teu padrinho de coração", dizia e soltava aquele riso claro e largo.
Francisco Nicholson, que foi agora embora, era um homem de lealdades, que se encolerizava com as traições e com as falhas de amizade. Aproveitávamo-nos de um dito meu: "A amizade é um posto", e a expressão levávamos quase até às últimas consequências. Vimo-nos a embranquecer os cabelos, estivemos nas mesmas periferias dos sonhos, dos copos, dos encontros fugazes e nas certezas das convicções. Conversámos muitas vezes das desilusões, dos estipendiados da traição, de livros e de autores, dos amigos que iam. Frequentemente recordávamos o José Viana, e as tertúlias animadas pelo grande actor, na casa onde então morava, na Rua das Taipas. Aquelas tertúlias que se esticavam até de manhã, e onde as conversas constituíam aprendizagens de vida, de política, de arte, de cinema, de teatro.
"É preciso muita coragem para se viver neste país." Era e é. Os melhores de nós, o Nicholson compreendido, envolveram-se na perigosa luta clandestina, sem jamais beliscar os grandes princípios da amizade. A idade da nossa formação foi edificada nesses valores de respeito pelos outros e da dignificação do carácter de quem quer que fosse. O Francisco Nicholson pertencia a esse património cultural e moral que cimentou uma grande geração de resistentes.
Ele não foi apenas um actor, um encenador e um escritor de revistas, foi um grande homem de cultura, no que a palavra possui de mais lato senso. Apresentei, com gosto e aprazimento, o seu último livro "Os mortos não dão autógrafos", no qual a ternura pelos outros se mistura com a grande ironia de viver. De súbito, o infortúnio tocou-lhe no batente. Um transplante de fígado que correu assim-assim, um segundo que correu mal: adveio-lhe a doença dos pezinhos. Não perdeu a ironia e o sarcasmo, o meu velho amigo, mas notava-se-lhe no olhar a sombra de uma imensa tristeza.
Deixa um legado que, por si, fora buscar às nossas grandes tradições culturais. Um a um eles vão embora, e eu vou sentindo um triste vazio em meu redor. Fazem-me falta o seu riso claro e largo, a sua generosidade discreta e a sua amizade sempre presente. "Não te esqueças de que sou teu padrinho de coração."
Adeus.
Francisco Nicholson, que foi agora embora, era um homem de lealdades, que se encolerizava com as traições e com as falhas de amizade. Aproveitávamo-nos de um dito meu: "A amizade é um posto", e a expressão levávamos quase até às últimas consequências. Vimo-nos a embranquecer os cabelos, estivemos nas mesmas periferias dos sonhos, dos copos, dos encontros fugazes e nas certezas das convicções. Conversámos muitas vezes das desilusões, dos estipendiados da traição, de livros e de autores, dos amigos que iam. Frequentemente recordávamos o José Viana, e as tertúlias animadas pelo grande actor, na casa onde então morava, na Rua das Taipas. Aquelas tertúlias que se esticavam até de manhã, e onde as conversas constituíam aprendizagens de vida, de política, de arte, de cinema, de teatro.
Ele não foi apenas um actor, um encenador e um escritor de revistas, foi um grande homem de cultura, no que a palavra possui de mais lato senso. Apresentei, com gosto e aprazimento, o seu último livro "Os mortos não dão autógrafos", no qual a ternura pelos outros se mistura com a grande ironia de viver. De súbito, o infortúnio tocou-lhe no batente. Um transplante de fígado que correu assim-assim, um segundo que correu mal: adveio-lhe a doença dos pezinhos. Não perdeu a ironia e o sarcasmo, o meu velho amigo, mas notava-se-lhe no olhar a sombra de uma imensa tristeza.
Deixa um legado que, por si, fora buscar às nossas grandes tradições culturais. Um a um eles vão embora, e eu vou sentindo um triste vazio em meu redor. Fazem-me falta o seu riso claro e largo, a sua generosidade discreta e a sua amizade sempre presente. "Não te esqueças de que sou teu padrinho de coração."
Adeus.
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