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16 de Março de 2020 às 19:15

Desta vez vai ser diferente? - (VI)

O BCE corre o risco de acentuar a dependência dos mercados financeiros do euro em relação à política monetária não convencional, estreitando cada vez mais a sua margem de manobra.

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1. Escrevi este artigo antes das decisões do BCE de Lagarde. Decidi mantê-lo inalterado para sublinhar os dilemas com que se debate.

 

A epidemia do coronavirus está a ameaçar a economia mundial por três vias distintas: ameaça desagregar as cadeias de produção, constituídas ao longo de décadas de deslocalização e de transferência de capacidade produtiva para a Ásia; está a efectar de forma crescente múltiplos sectores de serviços - em particular a hotelaria, a restauração e os transportes; está a afectar os mercados financeiros e a provocar uma correcção acentuada dos mercados de acções.

 

A queda rápida do preço do petróleo veio, neste contexto, introduzir um elemento adicional de instabilidade nos mercados com implicações imprevisíveis.

 

Embora seja ainda difícil avaliar o seu impacto global sobre a actividade económica, estes riscos estão a provocar revisões "em baixa" das previsões de crescimento da generalidade das economias por parte das agências e instituições especializadas - FMI, OCDE e Banco Mundial.

 

2. Neste contexto, é de admitir que a Zona euro venha a ter de absorver - quando ainda se debate com as sequelas da crise financeira - o impacto de uma nova crise. A ser assim, como vai a Europa do euro enfrentar os seus efeitos recessivos? Vai de novo deixar a política monetária isolada, num quadro de grande complexidade e incerteza? O que, a verificar-se leva a dois tipos de interrogações:(*) com que instrumentos vai o BCE intervir e qual a eficácia marginal da sua acção no contexto actual?

 

Vai seguir a Reserva Federal e cortar a sua taxa de juro oficial? Vai aumentar o volume das suas operações de injecção de liquidez nos mercados do euro? Vai alargar as facilidades de crédito que tem vindo a conceder aos bancos comerciais?

 

Se o fizer é razoável admitir que a actuação do BCE de Lagarde possa, por si só, preservar a estabilidade dos mercados financeiros do euro e inverter ou mesmo travar um eventual movimento recessivo? Pode Lagarde repetir com resultado idêntico o "whatever it takes" de Draghi? Agora num contexto muito diferente e por ventura ainda mais complexo e imprevisível.

 

No caso da Reserva Federal, compreendemos a sua decisão se tivermos presente que a queda nos mercados de acções afecta as expectativas de rendimentos futuros de muitos consumidores. O que, por sua vez, leva a uma retracção do consumo que pesa de uma forma determinante na procura interna da economia norte-americana e, através desta, no seu crescimento. Ao cortar a taxa de juros quis assim antecipar-se ao efeito recessivo do coronavirus, mesmo correndo o risco de, a curto-prazo, surpreender e afectar a estabilidade dos mercados, como aconteceu.

 

O quadro em que a acção do BCE se faz sentir é muito diferente: por um lado, a taxa de juros oficial encontra-se já num nível negativo (-0,5%). Um corte adicional irá sobretudo acentuar os efeitos perversos já hoje presentes - penalização do aforro, distorção da avaliação do risco nos mercados e transferência de rendimento para os devedores. Para além de originar pressões adicionais sobre as margens financeiras dos bancos; por outro, injecções adicionais de liquidez irão sobretudo alimentar a bolha de valorização dos activos financeiros que o BCE tem vindo a acumular no seu balanço - sobretudo dívida soberana e alguma dívida emitida por privados.

 

Ao proceder deste modo o BCE corre o risco de acentuar a dependência dos mercados financeiros do euro em relação à política monetária não convencional, estreitando cada vez mais a sua margem de manobra. Tendo ainda presente a ineficácia da política monetária para actuar sobre a oferta, é de esperar que Lagarde intensifique os apelos à intervenção das políticas fiscais. Desta vez vai ser ouvida (a continuar)? 

 

(*) Escrevo este artigo antes de conhecer as decisões que o BCE possa vir a tomar.

 Economista

 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

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