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28 de Abril de 2020 às 09:20

Desta vez vai ser diferente? - (IV)

Durante quanto tempo pode o BCE continuar a acumular no seu balanço dívida das economias devedoras; para além disso, até onde pode levar a acumulação dos efeitos perversos que estão a distorcer os mercados e a reduzir a eficácia da sua política monetária não convencional?

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1. A Europa do euro está a enfrentar a sua "hora da verdade". Para o compreender é apenas necessário ter presente o impacto sem precedentes da pandemia que repentinamente paralisou mecanismos básicos de regulação e de funcionamento da actividade económica. Como resultado - decerto para desgosto dos ordoliberais alemães e dos seus seguidores - só uma intervenção maciça dos Estados pode simultaneamente: "pôr de pé" uma acção de emergência de combate à crise sanitária e de defesa do tecido produtivo mais exposto e vulnerável; mobilizar os recursos necessários para, no pós-quarentena, lançar programas de estabilização dos mercados e de relançamento do crescimento económico.

Neste contexto, o futuro da União Europeia vai ser determinado pelas respostas que der a três tipos distintos de questões: a primeira, decorre da própria resposta de emergência com que os Estados da União estão a reagir à crise. O seu baixo nível de coordenação está a pôr em causa dois dos pilares centrais do quadro doutrinário que tem condicionado a evolução da União Europeia: por um lado, o rígido e complexo conjunto de regras que enquadra as políticas fiscais/orçamentais e que se destina a assegurar a imposição de políticas de austeridade como mecanismo de ajustamento e de correcção de desequilíbrios, independentemente dos seus custos económicos e sociais.

Perante o impacto sobre a situação orçamental do elevado volume de recursos que está a ser necessário mobilizar, a Comissão foi forçada a suspender as regras orçamentais, mas por quanto tempo e com que condicionalidade pós-pandemia? Por outro lado, a resposta de emergência está a colidir frontalmente com a interpretação e a utilização restritivas que a tecnocracia da Comissão - com o aplauso das correntes liberais que olham com desconfiança para as intervenções do Estado na economia - tem vindo a fazer das chamadas "ajudas de Estado". O argumento de que se trata de apoios transversais às economias e que, por isso, não colocam problemas de concorrência só é válido no interior da cada economia.

 

A nível de Mercado Único, a resposta assimétrica que está a ser dada - mais ou menos robusta e eficaz em função da capacidade ou da margem de actuação de cada Estado - deixa os sectores produtivos das economias mais frágeis em situação de grande desvantagem e vulnerabilidade. Se esta actuação não cria problemas agudos de concorrência entre as economias que integram o Mercado Único, não se vê o que é que os pode originar?! A segunda questão decorre do nível de fragmentação com que a Zona Euro se arrisca a sair da crise actual se não recuperar os princípios de solidariedade e cooperação que estiveram na sua origem. Uma resposta não coordenada e assimétrica alargará o fosso entre as economias devedoras e as economias credoras, com implicações económicas, sociais e políticas que serão no pós-pandemia uma ameaça à estabilidade da Zona Euro e mesmo à sua sobrevivência com a configuração actual; a terceira e última questão refere-se ao papel que o BCE tem vindo a assumir no contexto da Europa do euro. O programa que lançou para responder à actual crise preservou no essencial a estabilidade dos mercados de capitais e bancários do euro. No entanto, um número crescente de investidores está a colocar dois tipos de dúvidas: durante quanto tempo pode o BCE continuar a acumular no seu balanço dívida das economias devedoras; para além disso, até onde pode levar a acumulação dos efeitos perversos que estão a distorcer os mercados e a reduzir a eficácia da sua política monetária não convencional?

Acresce que - para além dos problemas económicos - uma resposta global da União Europeia que não atenda às dificuldades das economias devedoras irá ter perigosas repercussões políticas. Os grupos e movimentos populistas antieuropeus não deixariam de tirar partido do descontentamento pós-pandemia, de ganhar força e de ameaçar ou mesmo de procurar destruir o próprio projecto europeu.


2. Considero que, à luz deste quadro, o Conselho Europeu do dia 23 de Abril assumiu uma importância raras vezes igualada na história da União Europeia e do euro. Veremos até que ponto as suas decisões - que já serão conhecidas quando este artigo for publicado - respondem aos riscos e às ameaças suspensas sobre a Europa do euro e, em particular, sobre as economias devedoras menos eficientes e competitivas. Como me encontro entre os que consideram que qualquer alternativa ao projecto europeu terá riscos e custos - económicos, sociais e políticos - sempre mais elevados, ainda quero acreditar que, uma vez mais, se cumpra a afirmação de Jean Monnet (…) "a Europa será forjada por crises e será a soma das soluções encontradas para lhes responder." Resta esperar que desta vez seja de facto diferente.

Economista

 

Artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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