Opinião
Défice, austeridade e loucura
Com o Brexit à vista, podemos agora começar a preocuparmo-nos com o que virá a seguir. O sistema inglês, seja por causa da aversão a Corbyn ou porque que os ingleses queriam mesmo libertar-se das amarras europeias e ir com o vento, produziu finalmente uma decisão de ruptura com a Europa, algo que não conseguiu fazer ao longo de 3 anos.
E assim tivemos um dos mais importantes momentos históricos do nosso tempo, que, tendo sido despoletado por uma questão interna do partido conservador inglês, deu lugar a um referendo que ignorou as questões económicas e se centrou na exploração dos medos da imigração. Um referendo cujo resultado irá ser agora concretizado.
Para quem defende que a História tem um curso lógico, esta sequência de eventos é exemplar.
Infelizmente, o Brexit não é em si um acontecimento, mas antes um processo que se desenvolve no tempo e que irá marcar as próximas décadas, produzindo efeitos para todos os gostos e para todas as jurisdições, sejam insulares ou continentais. Um processo onde os ingleses vão ser confrontados com a realidade que se ocultava debaixo do manto diáfano da fantasia e onde os continentais vão ter oportunidade de optar entre construir para si uma potência global ou pelo contrário, levantar muralhas para se isolarem de novo em milhares de paróquias que têm o hábito secular de se trucidarem regularmente entre si.
Neste Brexit, que agora segue o seu curso, um dos aspectos que não tem merecido a devida atenção é a mudança que se operou em Inglaterra na atitude política relativamente aos gastos públicos. Assistimos mesmo a uma competição sobre como gastar mais dinheiro, seja no SNS ou em infraestruturas, seja na Polícia ou em tudo o que possa restaurar a largueza de funcionamento de um País que se quer feliz e rico. Os números propagandeados são impressionantes e não deixam de provocar alguma estupefacção nos espíritos educados na contenção da despesa pública e no equilíbrio financeiro.
Esta mudança de registo no fecho do que foi um período de austeridade é, no entanto, uma das saídas possíveis para um ciclo que se abriu muito tempo antes. De facto, com democracias que vivem com mandatos políticos de 4 anos e onde é possível gerar endividamentos gigantescos, que apenas serão visíveis muito mais tarde, e até mesmo só nas gerações seguintes, é frequente acumular dívidas que irão abrir caminho a crises financeiras no futuro e depois, aos respectivos períodos de correcção e austeridade.
No caso Português, recorda-se que, entre 1974 e as cativações do Ministro Centeno, tivemos a alegria de alinhar défices públicos, por regra bem superiores a 3% do PIB. Partidos políticos, Povo e Media lusitanos nunca atribuíram grande importância a essa realidade. A despesa foi sendo aceite como uma função social essencial onde o dinheiro a crédito era coisa que não faltava. O modelo funcionou na perfeição e a despesa pública foi sempre resolvida por dívida pública.
Quando em 2007 o sistema financeiro mundial cai com grande estrondo, originando mais tarde a paragem da rotina mágica das emissões de dívida dos Estados, apercebemo-nos de que havia um problema. Foi o início da nova fase do ciclo, a que se dá o nome de austeridade, que entra pela porta grande sem pedir licença nem aos Partidos políticos, nem ao Povo nem aos Media, e nos obriga ao duro reencontro com a realidade. O sangue, suor e lágrimas passaram a ocupar o espaço do dinheiro fácil. A austeridade surge como um acto de contrição, uma penitência pelos excessos cometidos que, dependendo da natureza dos Povos, é melhor ou pior suportada. No nosso caso, foi reconhecida a estoicidade com que suportámos o sofrimento.
Mas como nada na vida é eterno, até a fase de austeridade tem um fim, podendo vir a ser ultrapassada com maior ou menor equilíbrio ou sabedoria. Situações há, em que a loucura toma conta da correcção do sofrimento. O que acontece agora no Reino Unido, prestes a deixar de estar sob o travão de Bruxelas, parece paradigmático. Para ganharem o apoio popular, os políticos excitam os seus súbditos com promessas irrealistas. A raiva com que no Reino Unido se quer fechar a fase da austeridade, que se quer fazer crer ocorrerá com a libertação do "jugo" europeu, abriu a grande avenida da loucura.
Este tipo de saída irresponsável da fase de austeridade, não é no entanto, de estranhar, pois já que aconteceu muitas vezes em várias partes do Mundo. O problema é que esta nova fase do ciclo deu por vezes lugar a quadros sinistros, já que nem sempre a criação monetária que é justificada para apagar a austeridade, se traduz apenas numa nova crise e recessão financeira.
Foi o caso, certamente extremo e esperemos irrepetível, do fecho dramático de um longo período de austeridade que aconteceu na Alemanha dos anos 30. Duramente humilhada pelas condições impostas pelos aliados à saída da I Guerra Mundial e privada de acesso ao crédito após o colapso do sistema financeiro mundial em 1929, a economia alemã desfez-se. O desespero de todo um povo, dá a Hitler a oportunidade de lhes oferecer a libertação e a felicidade, com uma nova e inebriante ideologia, mas também com a criação ilimitada de dinheiro. Hitler dá mesmo às empresas, a possibilidade de participarem na criação monetária, permitindo aos privados a emissão de notas de dívida pública sempre que o Banco Central não possa intervir. Só que, dessa vez, a loucura financeira na Alemanha não teve como epílogo uma nova recessão financeira. O Estado Nazi, galvanizado pela riqueza aparente e pela força que daí lhe advinha, vai cobrar o tributo de que necessitava, roubando e exterminando o Povo Judeu, e depois de 1939, alargando a colecta aos Países vizinhos.
Este triste balanço histórico, serve pelo menos para lembrar, que nem todos os fechos de ciclo são virtuosos e que o fim da austeridade pode mesmo acabar muito mal.
Economista
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