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16 de Agosto de 2013 às 00:01

A idade da construção (2)

Volto à Volta a Portugal, 1958, até porque me esqueci, lamentavelmente, de nomear um dos grandes jornalistas que relatavam, com minúcia e sabedoria, o magno acontecimento. Fernando Ávila, do "Diário Popular", com o qual trabalhei, muitos anos depois, conhecia os meandros e as combinações da Volta, e possuía um humor subtil e corrosivo. Homem de Esquerda, já se sabia que, quando a corrida passava por Santa Comba Dão, o Ávila, cachimbo, chapéu-de-sol, sorriso gozão, conseguia driblar a Censura e escrever, no seu jornal, uma notícia sarcástica sobre o local. E os leitores estavam sempre à espera da "piada do Ávila."

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As peripécias da minha aprendizagem passam, como os Dilectos já perceberam, pelo contacto com esta gente, frequentemente admirável, apesar das circunstâncias históricas em que vivíamos. E a Volta, como todos os empreendimentos humanos, foi marcada por altos e baixos, por safadezas incríveis e por momentos de grande decência e dignidade.

 

Uma dessas histórias, que me emocionou e se me fixou na memória, já a contei, há anos. Repito-a para que se não perca, na pureza dos seus propósitos. Alberto de Carvalho era um jovem imberbe e com a genica própria da idade. Só tinha olhos rápidos e aquiescentes para o seu treinador, Pinto Valongo, o Sorridente, e para o irmão mais velho, Joaquim, que fora chefe-de-fila e, depois, ponta-de-lança de Ribeiro da Silva, vedeta do Académico. Joaquim, veterano pelado e sabido, repuxava toda a atenção para o irmão, não fosse a malta da estrada apertar o miúdo com manhas e sacaneiras. Homem prudente e avisado por um sem número de provas ciclistas, Joaquim era a sombra constante do Alberto, protegendo-o e avisando-o. Quando este afrouxava a pedalada, logo o mano velho aparecia, com a palavra seca e rigorosa, a extrair dos músculos do outro novas reservas de energia. Quando Alberto ficava deslumbrado com os aplausos dos caminhos, aparecia, a recomendar prudência, a dar ao outro o que ao outro faltava de tacto e de saber.

 

Uma tarde, quando a Volta, tranquila de exaustão, rolava pela charneca alentejana, que terminava na meta de Portalegre, Joaquim gritou ao Alberto:

 

- É agora! Foge! Vais sozinho porque já não tenho pernas para te acompanhar!

 

Piscou o olho ao mano novo e deu-lhe o último recado:

 

- Olha por ti!

 

Ante a perplexidade do pelotão, Alberto arrancou, com a emoção dos grandes momentos. Pedalou, pedalou, pedalou horas a fio, sozinho na grande planície. Faltou-lhe a comida. Faltou-lhe a água. Faltou-lhe, sobretudo, a palavra exacta do irmão mais velho. E ninguém aparecia, naquela imensidão silenciosa e trágica, a berrar-lhe a alegria de um reencontro. A pele dos músculos das pernas estalou com a inclemência do sol. Os lábios gretaram até sangrar. Horas e horas neste fadário. Foi quando, a dez quilómetros de Portalegre, vindo, sabe-se lá de onde!, apareceu, no meio da estrada, um homem da terra com um pote de água.

 

- Atira! - gritou Alberto.

 

O homem hesitou, segundos apenas. Atirou a água, que se destinava a refrescar o campeão solitário. Errou o cálculo: nem uma gota tombou sobre o Alberto, que se esticara todo, no selim, sem abrandar a pedalada, para não falhar a sua primeira vitória.

 

O homem da terra, pesaroso ante a inutilidade aparente do seu gesto, ficou especado e triste, a ver o outro a afastar-se. Então, sempre a pedalar, com fúria e obstinação, Alberto voltou-se para trás e gritou:

 

- Fica para a outra vez, companheiro!

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