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A ratificação do acordo comercial Canadá-UE (CETA). E o papão da justiça privada

A Assembleia da República vai votar no dia 20 deste mês a ratificação do CETA, sigla inglesa do Acordo Económico e Comercial Global, celebrado entre o Canadá e a União Europeia em Outubro de 2016.

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Haverá muitas razões para votar contra (embora eu perceba mal os argumentos proteccionistas tanto à esquerda como à direita). Mas há uma razão que no nosso país tem dominado o limitado debate público sobre a matéria e que, pura e simplesmente, é falsa.

 

Trata-se do argumento de que o CETA prevê um sistema de resolução de conflitos entre os investidores estrangeiros (invariavelmente descritos como "grandes empresas multinacionais") e os países acolhedores do investimento que se basearia em tribunais arbitrais. Há dias, uma intelectual da estatura de Luísa Schmidt – cuja obra, aliás, muito admiro – dizia na Antena 1 que as disputas entre os Estados e os investidores iriam ser resolvidas por "tribunais arbitrais privados", através dos quais as multinacionais "imporiam aos Estados os seus interesses". A isso, a deputada Gabriela Canavilhas respondeu que tinha obtido da secretária de Estado Ana Paula Zacarias garantidas de que não iria ser assim. A gente ouve e não acredita!

 

A questão é razoavelmente antiga, mas parece que só agora chegou aos círculos da intelectualidade portuguesa. Há cerca de 10 anos que a via arbitral para a resolução de conflitos entre Estados e investidores estrangeiros (a chamada "arbitragem de investimento") vem sendo contestada por governos de países tão díspares quanto a África do Sul, o Equador ou a Austrália.

 

A oposição a esse tipo de ISDS (Investor-to-State Dispute Settlement) conheceu um súbito impulso quando, em 2014, um tribunal arbitral sediado em Haia condenou a Federação Russa a pagar mais de 50 mil milhões de dólares aos accionistas da Yukos, uma empresa petrolífera russa que Vladimir Putin expropriou como retaliação pelas ambições políticas do seu Presidente, Mikhail Khodorkovsky. Há quem suspeite que o Presidente russo, confrontado com uma factura equivalente a 25% das reservas do país em divisas, pôs os seus serviços de inteligência a combater nas redes sociais a arbitragem de investimento através de "bots" e outros meios de contrapropaganda digital.

 

Fosse assim ou não, a verdade é que a opinião pública europeia passou a identificar a arbitragem como o cancro do então iminente Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento (TTIP). E o tratado não foi assinado. Mas a Comissão Europeia aprendeu a lição. Em Maio de 2015, iniciou a discussão pública de um novo sistema de justiça internacional de investimento. E em Novembro de 2016, propôs o Sistema de Tribunal de Investimento (Investment Court System). É este sistema institucionalizado e permanente que o CETA contempla no seu articulado desde Fevereiro de 2016. Não é perfeito, mas – bem ou mal – nada tem que ver com tribunais arbitrais. Os juízes do Tribunal de Investimento são magistrados designados pelos Estados contratantes, há uma instância de recurso e as audiências são públicas.

 

Mas não é só isso. Há dias, a Comissão Europeia formulou o pedido de mandato para negociar uma convenção internacional para a criação de um tribunal multilateral de investimento. E de acordo com o jornal americano Político, o presidente Juncker pretende que os trabalhos da Comissão sejam liderados pela UNCITRAL (ou CNUDCI), a Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional. Os que receiam que os litígios entre investidores canadianos e o Estado português possam vir a ser resolvidos, em segredo, por tribunais privados constituídos por "grandes advogados" podem dormir descansados.

 

Advogado e membro do Painel de Árbitros do ICSID (Banco Mundial)

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