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Referendos, a arma de governantes fracos e de populistas fortes

O referendo no Reino Unido, como o referendo na Grécia no ano passado, não foi uma prova de vitalidade da democracia num tempo de apatia do eleitor. Foi, pelo contrário, um fracasso da democracia.

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Britânicos e gregos ilustraram como um referendo pode ser um instrumento de desresponsabilização política e de divisão do eleitorado, favorecido por governantes fracos e populistas fortes.

 

A sedução do referendo é fácil de perceber numa altura em que a maioria das pessoas desconfia dos políticos e sente que a sua voz não é ouvida. Mas os referendos têm uma série de problemas, descritos pela literatura académica: a forma como se faz a pergunta influencia o resultado; o voto tende a ser mais de protesto contra "a situação" do que com a questão específica a referendar; se esta for muito complexa os eleitores têm dificuldade em avaliar a consequência do voto; os referendos são usados para tapar divisões partidárias ou legitimar decisões impopulares.

 

Estes são problemas reconhecíveis, em acumulação ou isoladamente, no referendo grego e no britânico. A pergunta na Grécia - que não reproduzo na íntegra porque ocupa todo um parágrafo em que se pede que o eleitor se pronuncie sobre documentos técnicos - é de antologia. A pergunta britânica é clara - mas "leave" é uma acção que sugere mudança (uma sugestão propícia para tomar a União Europeia pelo todo dos problemas britânicos), "remain" soa a mais do mesmo. A complexidade dos temas, que facilita a manipulação dos eleitores, era enorme. No dia seguinte, ninguém sabia na Grécia, como ninguém sabe hoje no Reino Unido, qual a consequência do voto.

 

O referendo do Brexit soma outro problema mais grave: é possível decidir, por mera maioria simples, questões que redefinem estados e uniões de estados? Num artigo imperdível ("Britain's Democratic Failure"), Kenneth Rogoff pergunta: "Chega ter 52% a votar pela saída num dia de chuva?" Estes 52% são 36% do eleitorado. Para decisões fundamentais como uma revisão constitucional, por exemplo, o patamar no Parlamento é de dois terços. O mesmo autor conclui o óbvio: "Um país não deve tomar decisões fundamentais e irreversíveis baseadas numa maioria tangencial que pode prevalecer apenas durante uma breve janela de emoção." Nem deve tomá-las aceitando como vinculativo um patamar que, à luz da actual demografia, valida o desequilíbrio na relação entre gerações, como se percebeu no Brexit.

 

Em vez de elogiar a maturidade da democracia britânica ou a festa dos eleitores gregos, seria mais útil perceber a perversão que este uso da democracia directa representa para a própria democracia. Não se trata de banir referendos sobre matérias europeias mas, como sugere Rogoff, de usar estes exemplos para melhorar o processo político de saída da União Europeia (elevando a fasquia para votos de ruptura, abrindo a possibilidade a mais do que uma consulta popular, etc.). Estas são lições importantes a caminho da futura onda a favor de referendos - uma onda, não por acaso, liderada por populistas.

 

P.S.: Catarina Martins acena com um referendo "contra a chantagem da Europa" e sobre "a forma como Portugal se relaciona na União Europeia" caso Bruxelas aplique sanções a Portugal. A ideia morreu às mãos dos outros partidos. Mas vale a pena perguntar: como seria exactamente a pergunta desse referendo? E qual a consequência do voto? É de suspeitar que nem a própria Catarina Martins saiba responder.  

 

Jornalista da revista SÁBADO

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