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Opinião
04 de Março de 2018 às 21:00

Até com o diabo aprendemos

Pedro Passos Coelho vai dar aulas de Administração Pública no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. A academia, parte dela, indignou-se, berrou e esperneou. Não me espanta. Não deve espantar ninguém.

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A universidade e os seus magníficos catedráticos e aspirantes --, alguns deles , não todos, não todos... -, vivem em incesto com o próprio ego. Julgam-se magníficos e singulares pensadores. Policiam o território e afastam os indesejáveis, isto é, os que são de fora, o outro e o estranho, o não-conformista, os que trilharam outro caminho e têm uma experiência de vida diferente.

Aquele metro quadrado da academia tem valor simbólico e monetário. Muitas vezes nem sequer exige que em troca se faça ou investigue e se publique qualquer coisa de minimamente sólido que possa ser lido, comentado e testado. Quantos fabulosos professores de economia, apenas para dar um exemplo, temos a debitar recomendações, lá do alto do Olimpo, sem que, por trás, tenham trabalho científico à altura da bazófia? Ocuparam o lugar. Criaram raízes. Dali não saem. Estão confortavelmente enfiados numa espécie de bunker intelectual. São "insiders". Já não produzem, chegaram a um ponto da vida onde lhes é suficiente planar e enxotar quem tenta entrar no perímetro -- oh insana ousadia! Até um antigo primeiro-ministro, com todo o saber que inevitavelmente ele leva consigo, é rejeitado e esnobado. Realmente a estupidez e a inveja não conhecem limites. A má moeda quer sempre expulsar a boa moeda.


Pedro Passos Coelho não é uma figura politicamente consensual. Não é, digamos, como António Guterres, a quem hoje todos prestam vénias. O secretário-geral da ONU fala como um príncipe do Renascimento e tem um conhecimento enciclopédico. É verdade. Quisesse ele voltar ao Técnico, as portas haveriam de abrir-se gloriosamente de par em par, não obstante o longo afastamento da engenharia. Guterres teve uma breve carreira académica e foi um aluno brilhante, o que facilita as coisas perante o statu quo. Já Passos Coelho licenciou-se tarde e sem brilho algum. Dito isto, a verdade é que António Guterres foi um fraco primeiro-ministro quando tinha tudo a seu favor, incluindo ventos e marés e até os astros do zodíaco. Já Passos Coelho, embora com erros pelo caminho -- alguns ainda estão a ser corrigidos -, segurou o país numa altura de exigência máxima e aguentou espantosamente até ao fim. Cumpriu o mandato e parte do caderno de encargos. Serviu o país.


Qual dos dois, Passos ou Guterres, seria então melhor para dar aulas sobre o Estado e a Administração Pública? Simples. Os dois. A única resposta correta seria esta. Um não exclui o outro. A academia só teria a ganhar com tamanho arsenal de conhecimento prático, um ótimo complemento para o conhecimento teórico (científico...) mais evidente, embora igualmente trabalhoso, que existe dentro das quatro paredes das universidades. Quando um ex-líder de governo decide devolver o que aprendeu isso não é um impulso benemérito, é uma escolha deliberada entre ganhar uma montanha de dinheiro numa empresa (Durão Barroso, Tony Blair) ou continuar a prestar um serviço público. Passos Coelho não é a madre Teresa de Calcutá, mas também não é o diabo - embora até o maldito tenha sempre alguma coisa a ensinar-nos.

Já agora, o mais previsível seria Passos Coelho transitar logo para uma televisão, uma transumância habitual, onde cultivaria a imagem e potenciaria o verbo, características chave para quem, um dia, regressará à política ativa, o que certamente acontecerá. Um antigo primeiro-ministro comentador não seria sequer novidade, além de que a ocupação até pode ser muitíssimo bem remunerada. Para já, Passos também não seguiu por aí, o que não deixa de ser espantoso e, por isso mesmo, assinalável. É isto que me importa nesta história.


Este artigo está em conformidade com o novo acordo ortográfico

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