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03 de Setembro de 2017 às 21:00

As startups são as novas rotundas

Quem passa junto às arribas de Porto Covo não vê pescadores debruçados sobre o mar porque há uma lei que os proíbe de tentarem a sorte por aqueles lados, mas peixe não falta por ali, nem água límpida, algas e muita vida aninhada entre as rochas escarpadas. Não é permitido pescar e a explicação é simples.

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Aquela zona, com vista aberta sobre a ilha do Pessegueiro, serve de viveiro a várias espécies de peixes e aves e até plantas que aproveitam a brisa Atlântica.


Logo à frente, há um extraordinário e fino areal que recebe banhistas e surfistas e turistas, e alimenta a vila durante mais de metade do ano. À volta há também campos agrícolas de trigo e cevada, agora enrolados em donuts - a nova moda é vesti-los de plástico branco -, à espera de serem levados, mas também produtos hortícolas, tomate, batata, couves, alface, embora não em escala industrial. São explorações de pequena e média dimensão, muitas para uso doméstico, embora um pouco mais a baixo, a sul de Vila Nova de Mil Fontes, logo a seguir ao rio Mira, depois das Furnas e até ao Cabo Sardão, o que mais há são filas e filas de estufas que parecem dominós embaciados distribuídos lado a lado que revelam uma cada vez mais intensa e profissional indústria a que chamamos agroalimentar e que também ocupa e faz desenvolver a região, compondo, com o turismo, a economia local. Trazem poluição química que derrama para os lençóis freáticos e para o oceano azul, mas essa é outra história, porque também criam riqueza.

Sobre o Portugal que vai a votos a 1 de outubro eu poderia tentar descrever, ainda que de maneira imperfeita, o que o define e singulariza, como fiz agora com esta parte do litoral alentejano, especificando o que converte certas zonas em espaços únicos no rendilhado de vilas e aldeias e capitais de distrito deste pequeno país. Poderia também contar que há dias, a caminho do Porto, apesar das imagens em repetição que tenho visto nas tvs, fiquei em choque ao ver as margens da autoestrada pintadas de outono precoce. O fogo pintara de negro carvão ou de bronze lambido pelas chamas o que antes eram árvores e campos que debruavam o caminho, transformando a vida possível em absurda desolação.

E no entanto se ouvirmos os nossos autarcas em campanha não é este o país de que falam. Estarei talvez a ser injusto com muitos, estou certamente, mas o que leio nos jornais regionais e ouço nas rádios locais parece-me tão desligado da realidade e tão surreal como as referências idiotas a Madonna no debate sobre Lisboa transmitido pena SIC. Há qualquer coisa de muito pacóvio nessa alusão à cantora pop na mesma medida em que, entre os autarcas de pequenas cidades, se enche a boca com devaneios sobre startups e incubadoras de empresas. A atração pelo que é novo e brilha é compreensível, mas faz-me impressão ouvir os candidatos vender ideias sobre a Silicon Valley que aspiram desenvolver na respectiva região, indiferentes ao logro que estão a propor, permanecendo de costas voltadas para a singularidade que os diferencia, o mar de Porto Covo, as montanhas do interior, os campos que têm a perder de vista.

As startups e as incubadoras de empresas são as novas rotundas dos autarcas ou então os novos polidesportivos que todos já têm. Cada um quer ter a sua incubadora para exibir à lapela e mostrar-se pós-moderno. Ainda não falam em "alavancar" ou "levantar dinheiro", a língua de trapo dos mercados, mas para lá caminham, apesar de não perceberem que tal como no vale do silício americano também não se comem perceves, aqui também não há massa crítica científica, industrial e financeira suficiente para dar lastro a genuínos e ambicioso projectos empresariais com raíz na nova economia. Como acontece também em Lisboa ou no Porto, confundem o mundo das apps com o da inovação e com este grosseiro erro de avaliação desperdiçam dinheiro público e tempo em projetos sem pés para andar, sem força ou energia para dar vocação a regiões que, nesta ânsia aspiracional de se tornarem como os outros, perdem a identidade que, devidamente cultivada, os poderia fortalecer e dar um rumo mais próspero.

 

P.S. Sobre a Autoeuropa já todos percebemos o golpe do PCP e a perda de poder do Bloco dentro da fábrica. Tenho lido muita opinião sobre o assunto, toda no mesmo sentido; o que tenho lido menos é informação com maior profundidade que seja capaz de me contar melhor esta história da Autoeuropa. Quando falamos em crise do jornalismo talvez pudéssemos também olhar para este lado da questão. Não é só o modelo de negócio que está demasiado espremido, é o próprio jornalismo que parece desprovido de sumo para dar. E no entanto há tantas histórias para contar. 

Jornalista

 

Artigo em conformidade com o novo acordo ortográfico

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