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Órbita perde pedal em Lisboa e cai num buraco negro
A fabricante portuguesa de bicicletas viu a maioria dos seus trabalhadores a rescindirem por salários em atraso e a EMEL a rasgar um contrato de 23 milhões de euros. E há, pelo menos, um pedido de insolvência da empresa da Águeda metido por um credor em tribunal.
Os portugueses nascidos nos anos 70 devem lembrar-se da Órbita, que foi para muitos deles a marca da sua primeira bicicleta.
Com um nome inspirado no primeiro satélite enviado a Marte com sucesso, a empresa nasceu em 1971 em resultado da decisão da Miralago, a empresa-mãe, fundada em 1956, que começou por produzir pinhões de ataque e cremalheiras, produtos que na época não eram produzidas em Portugal.
"Achei que devia haver uma empresa que devia produzir toda a bicicleta, evitando que uma empresa estrangeira viesse fazer o trabalho que nos competia: fabricar, montar e distribuir", lembrou Aurélio Ferreira, o empresário que vendeu a Miralago/Órbita em 2015, numa entrevista dada, no ano anterior, ao programa Sucesso.pt, da SIC Notícias.
Entretanto, com a chegada da concorrência asiática, nos anos 1990 e 2000, a Órbita teve que dar ao pedal para não cair.
Até que, em 2012, assume posição de destaque na área da "Mobilidade Sustentável Suave" em Portugal, com o fornecimento integral de 220 Bicicletas e 38 parques para o maior projeto à data de uso partilhado de bicicletas - o Vilamoura Public Bikes.
Nesse ano, garantiu também o fornecimento de 150 bicicletas elétricas para o projeto Inovador de distribuição postal pelos CTT em todo o país.
No ano seguinte, no sistema de bicicletas partilhadas, ganhou o fornecimento para a cidade de Viseu, e em 2014 para Vila do Conde, estando hoje presente em outras cidades, como na terra natal Águeda, Oliveira de Azeméis ou Bragança.
Antes, em 2011, um seu cliente em França adjudicou-lhe a colocação de 22 mil bicicletas elétricas nas ruas de Paris. Atualmente, a nível internacional, a Órbita pedala também em muitas outras cidades de países como Espanha, Áustria ou Eslovénia.
Órbita com novos donos em 2015 e um contrato milionário e problemático em Lisboa
Chegado a 2015, sem vislumbrar ninguém na família para dar continuidade à empresa, Aurélio Ferreira, então com 85 anos, decidiu vender o grupo Órbita-Miralago.
A nova administração do grupo, dos donos Jorge Santiago e Nuno Silva, toma posse no dia 4 de setembro de 2015, e, um ano depois, ganha uma espécie de "Euromilhões" à escala nacional: a Órbita vence o concurso para a Gira, o sistema de bicicletas partilhadas de Lisboa - um contrato no valor de 23 milhões de euros, com a validade de oito anos.
Mas eis que esta quarta-feira, 10 de abril, a EMEL, empresa municipal que além do estacionamento em Lisboa gere também a rede Gira, anunciou a rescisão do contrato com a Órbita alegando "sucessivos incumprimentos contratuais", desde dezembro de 2017, que resultaram em sanções de 5,25 milhões de euros, valor que corresponde a 20% do valor global do contrato, o limite máximo estipulado pela contratação pública para execução de penalizações deste género.
Segundo a EMEL, das 140 estações que deviam estar neste momento a funcionar, a rede Gira apenas dispõe atualmente de 92, sendo que 74 estão em operação, 15 estão instaladas mas têm falta de bicicletas e três encontram-se inoperacionais por falta de componentes.
Ao nível das bicicletas, em março, a rede Gira tinha em funcionamento uma média de 500 velocípedes, dos quais 200 elétricos, quando o número previsto no contrato era de 624 bicicletas elétricas e 311 convencionais, num total de 935.
A EMEL garante que a Órbita desperdiçou as várias oportunidades que lhe foram dadas para cumprir com o contratado, tendo-lhe sido dado até tempo, afiançou, para conseguir firmar a alegada entrada de um novo acionista, o que nunca chegou a acontecer.
Rescindido o contrato com a Órbita, a EMEL anunciou o lançamento de um novo concurso para a "expansão, operação e manutenção" da rede Gira, que prevê que ao atual sistema sejam adicionadas "até ao total de 3.500 bicicletas, 80% das quais elétricas, e até 350 estações, durante um período máximo de oito anos".
"Não é de boca que se rescinde o que quer que seja"
No dia seguinte, em comunicado, a Órbita manifestou uma "enorme surpresa" face ao anúncio da rescisão do contrato por parte da EMEL, e ainda que reconhecendo "que existem problemas na conclusão do projeto das Gira e na sua operação", avisava que "jamais" aceitaria "ser o bode expiatório de um problema que tem mais responsáveis e é mais complexo do que transparece".
Ao Negócios, o presidente da Órbita garantiu que, até ao final da tarde desta sexta-feira, 12 de abril, ainda não tinha recebido qualquer comunicação formal por parte da EMEL relativa à rescisão do contrato.
"Eles denunciaram publicamente que iriam rescindir mas não rescindiram - não tenho nada em cima da mesa", reagiu Jorge Santiago.
Daí que tenha rejeitado o desafio de responder às alegações da empresa municipal de Lisboa para a rescisão do contrato. "Nada posso avançar, não posso decidir nada enquanto não tiver um documento. Não é de boca que se rescinde o que quer que seja", ressalvou.
Maioria dos trabalhadores pede rescisão de contrato com base nos salários em atraso
Os problemas na rede GIRA, desde o final de 2017, denunciava a situação problemática em que o grupo Miralago/Órbita se encontra.
Após três meses sem receber salários, no princípio deste mês, cerca de 50 trabalhadores da Órbita enviaram cartas de rescisão de contrato para a empresa, enquanto o sindicato do setor manifestou a sua preocupação pela falta de trabalho na empresa por já nem sequer ter maquinaria para o efeito.
"Não é verdade. Temos muito trabalho", contrapôs o presidente da Órbita, ainda em declarações ao Negócios. "Mas não posso falar mais sobre isso, sob pena de pôr em causa a solução que tenho que ter com a EMEL", explicou, garantindo que tem a trabalhar na empresa "cerca de 15 pessoas".
A empresa está a caminho da falência? "Não, de maneira nenhuma", afiançou Jorge Santiago, apesar de reconhecer que o grupo que lidera tem vindo "a acumular prejuízos", adiantando que a faturação no ano passado "foi de cerca de quatro milhões de euros", contra "sete milhões no ano anterior".
Credores requerem administração judicial para a Miralago/Órbita
Contactada a Associação Nacional das Indústrias de Duas Rodas, Ferragens, Mobiliário e Afins (Abimota), o secretário-geral da organização começou por afirmar que "a situação da Órbita, e sem um conhecimento aprofundado do assunto, parece-nos resultar de algumas vicissitudes dos negócios em que a abordagem efetuada não resultou como havia sido planeada".
Para Gil Nadais, "às vezes há grandes projetos que são grandes problemas", reportando-se ao impacto da Gira na Órbita. "O projeto de Lisboa, conforme estava feito, exigia uma alavancagem financeira que não foi corretamente dimensionada", considerou o líder da Abimota.
Entretanto, há já credores a requerer a administração judicial para a Miralago/Órbita. É o caso da Forjaço, empresa da Anadia, que já requereu ao tribunal a insolvência da fabricante de bicicletas de Águeda.
"Sim, é verdade", confirmou fonte oficial da Forjaço, que, sem querer adiantar mais informações sobre esta matéria, sempre foi dizendo que "há situações bem piores", reportando-se aos créditos detidos por outros credores da Miralago/Órbita.
Portugal é o segundo maior exportador europeu e tem a maior fábrica
Segundo dados do Eurostat, em 2016 Portugal era o maior exportador de bicicletas da Europa, tendo descido para o segundo lugar no ano seguinte - perdeu o título de campeão europeu por uma nesga, pois tinha exportado em 2017 cerca de 1,73 milhões de bicicletas, logo atrás das 1,76 milhões de Itália.
Espanha, França e Itália são, de longe, os principais mercados das bicicletas portuguesas, tendo absorvido cerca de 80% do que é produzido no nosso país.
E é em Portugal que se situa a maior fábrica de montagem de bicicletas da Europa. Mora em Vila Nova de Gaia, chama-se RTE Bikes, emprega 700 pessoas e produz cerca de 1,4 milhões de unidades por ano, seguindo 95% para exportação.
Apesar de ter a maior fábrica de bicicletas, Portugal está fora do pódio europeu no "ranking" global.
"Portugal ocupa um lugar cimeiro no que se refere à produção de bicicletas, no entanto, não estando no segmento mais baixo do mercado, também não se encontra no mais elevado, embora continue a subir na escala de valor", sublinhou o secretário-geral da Abimota.
"Nestas circunstâncias Portugal monta um número elevado de bicicletas, sendo o quarto montador europeu, que ainda não é correspondido, ao nível do ‘ranking’, com o do valor, mas estamos a subir, e estamos certos que no final deste ano de 2019, com a grande aposta que está a ser realizada na montagem de bicicletas elétricas, teremos uma posição mais reforçada na componente valor", realçou Gil Nadais.
De acordo com este responsável associativo, o setor das duas rodas em Portugal tem "mais de duas dezenas de empresas e mais de sete mil trabalhadores".
Entretanto, a indústria portuguesa de bicicleta, que "já se tinha afirmado" em termos de qualidade, "está a ser testada na sua capacidade produtiva" e a "responder favoravelmente no que respeita ao número de bicicletas montadas e componentes fabricados", afirmou o líder da Abimota.
A recente regulamentação europeia sobre as bicicletas elétricas, assim como a introdução das taxas antidumping, "vieram promover uma procura mais forte das bicicletas elétricas que estão a ser muito procuradas na Europa e que são um veículo de eleição pelas vantagens que trazem, no que respeita à saúde e à descarbonização das cidades", defendeu.
Com a indústria nacional de bicicletas a pedalar a alta velocidade lá fora, Gil Nadais acusa o Governo de impedir que o setor tenha a mesma dinâmica no mercado interno: "Pena é que a desarticulação política em Portugal entre diferentes ministérios não permita que nos aproximemos mais rapidamente dos níveis de utilização da bicicleta de outros países europeus, e mantenhamos um mercado português diminuto."