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A piada, Reagan e a guitarra eléctrica: bem-vindos ao mundo de Trump

O que se passa na convenção republicana em Cleveland é a afirmação de uma certa América: que não quer pensar em soluções complicadas, se sente do lado do Bem e quer um líder que lhes diga que vai acabar com os maus.

Reuters
20 de Julho de 2016 às 18:31
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Quando Donald Trump foi oficialmente designado como o candidato republicano às presidenciais americanas, o empresário estava em Nova Iorque, a tratar dos negócios. Os últimos e decisivos boletins que lhe deram a vitória foram depositados, em conjunto, pelos seus quatro filhos, com o mais velho, Donald Jr., a declarar, emocionado: "Parabéns papá! Adoramos-te". Trump entrou por videoconferência, em directo da sua Trump Tower: "nunca, nunca esquecerei este momento. Este é um movimento, mas temos de ir até ao fim". O auditório do Quicken Loans Arena explodiu de entusiasmo.

A convenção republicana está a ser como nenhuma outra, da mesma forma que a extraordinária saga de Donald Trump até à nomeação não tem paralelo histórico. Nas palavras de Harold Evans, da Reuters, "Trump era uma piada até deixar de o ser". Na verdade, o Partido Republicano tudo fez para minar o seu caminho, desde colocar na sua frente uma dúzia de outros candidatos, todos eles mais respeitáveis, até ir concentrando as fichas num único adversário, passando pelo contorcionismo legal de encontrar uma qualquer cláusula nos estatutos do partido que permitisse retirá-lo da corrida. Foi tudo em vão.

Trump, o rolo compressor, ganhou o partido sem o partido, através dos militantes que, de costa a costa, foram sendo seduzidos pelo seu discurso populista, muitas vezes infantil, excessivo e desbragado, mas que teve um extraordinário mérito: fazer crer às pessoas que ele – o milionário estrela de TV – é uma delas, por oposição aos burocratas de Washington que estão absolutamente afastados do cidadão comum e das suas preocupações. Donald Jr., de 38 anos, explicou-o de forma feliz: "O meu pai tem um doutoramento em bom senso". A expressão original, ‘common sense’, é ainda mais exacta, é nisso que Trump assenta a sua mensagem. Não lhe peçam grandes números, propostas muito concretas ou a forma de as pagar. Perante o crime, não lhe perguntem de onde virá o dinheiro para armar melhor a polícia. A sua resposta é outra: os polícias são bons, os maus são maus e serão finalmente castigados. É esta simplicidade de linguagem, bem como a sua estranhamente bem sucedida identificação com os americanos bons tementes a Deus, que permite a visão maniqueísta desta campanha: tudo para os meus (os americanos bons tementes a Deus), nada para os outros.

Na convenção de quatro dias, tem havido de tudo um pouco. Mas muito pouco de duas coisas: de figuras de primeiríssima linha da elite republicana – nomeadamente anteriores presidentes; e da antecipada oposição a Trump. Esta última limitou-se a ligeiras escaramuças dentro do auditório, logo no princípio dos trabalhos, imediatamente abafadas pela esmagadora maioria de fiéis a Trump; e às manifestações fora do recinto, que dão ainda mais força a quem lá está dentro. Esse é outro dos segredos: quanto mais o candidato é atacado e ridicularizado, mais os seus adeptos se unem em torno dele, desconfiando dos sabichões da imprensa. Muitos deles, dos seus leais apoiantes, foram também atacados, excluídos, desacreditados culturalmente. Agora têm um campeão que foi tudo isto, mas que agarrou nesses ataques e os transformou numa torrente de força que o pode levar à Casa Branca.

Uma América grande. Outra vez.

Por cima do palco, a frase-chave da campanha, impressa em milhares de bonés vendidos no centro de convenções: "Make America Great Again". Um slogan, aliás, "roubado" a Ronald Reagan, que o usara anteriormente. Empresário astuto como é, Trump não tem problemas com isto. Pelo contrário, resolveu a questão ao registar comercialmente a expressão, removendo a primeira palavra usada então por Reagan: "(Let’s) Make America Again". O poder desta simples mensagem é tal que Trump ameaçou processar vários dos seus rivais republicanos por a terem utilizado em alguns discursos. A frase é, agora, mais uma das propriedades de Trump.

No palco, o momento mais mediatizado foi o discurso de Melania Trump, a ex-modelo eslovena que é casada com o candidato. No seu inglês robótico, falou da família e do que os filhos dos americanos podem esperar, acabando por plagiar um discurso semelhante de Michelle Obama, de 2008. O assunto fez as delícias dos internautas, mas é pouco provável que tenha algum impacto significativo na campanha. Como lembrou Stephen Collinson, da CNN, "a campanha de Trump tem sido a operação política menos convencional em muitas décadas, e revezes políticos que teriam atingido duramente qualquer outra candidatura dissiparam-se sem qualquer efeito evidente". Trump, ele próprio, já cometeu tantas gaffes e excessos que o público ficou insensibilizado. Já ninguém efectivamente se surpreende com o que ele ou a sua campanha ainda possam dizer.

A convenção, aliás, ultrapassou alguns limites perigosos, cuja perenidade será testada em futuras campanhas políticas. Apesar de cada dia do evento ser dedicado a um tema específico, o que se tem visto tem sido um desfile de elogios ao candidato republicano e, mais do que isso, a um tiroteio de acusações e insultos contra Hillary Clinton. Chris Christie, Governador de New Jersey que há muito apoia Trump, foi fazendo acusações umas atrás da outras, parando entre frases para perguntar à audiência: "Culpada ou Inocente?", para receber o veredicto de "culpada" gritado a plenos pulmões. As coisas ficaram piores com a intervenção de Sharon Day, do Comité Nacional Republicano, que foi repescar o famoso currículo privado de Bill Clinton: "Enquanto Primeira Dama, você insultou o carácter das mulheres que foram vítimas de abuso sexual às mãos do seu marido", atacou.

"Donald Trump é um lutador"

A lógica da mescla de oradores convidados não é fácil de perceber. Actores, familiares, políticos, empresários e simplesmente famosos. Um deles foi Dana White, presidente da Ultimate Fighting Championship, que explicou: "estive a minha vida inteira no negócios das lutas, eu conheço os lutadores e, senhoras e senhores, Donald Trump é um lutador. E eu sei que ele irá lutar por este país". Outro orador foi Willie Robertson, estrela do programa de televisão Duck Dinasty, um ‘reality-show’ sobre uma família de (auto-intitulados) rednecks do Louisiana. Depois de liderar uma oração colectiva, Robertson explicou o que o une a Trump: "Somos ambos empresários de sucesso, ambos tivemos programas de televisão bem sucedidos, e ambos temos mulheres inteligentes muito mais bem parecidas do que nós".

Outras celebridades não tiveram tanta sorte, mas nem isso as impediu de comparecer no apoio ao candidato. Don King, o famoso empresário do boxe, não foi um dos escolhidos para falar no palanque, mas não desmobilizou. Está cá fora, no passeio, tirando selfies com os fãs e fazendo campanha por Trump.

O que se passa esta semana em Cleveland é a afirmação de uma certa América. Que não quer pensar em soluções complicadas e que lhes digam que os assuntos são complexos e que levará tempo a cuidar deles e do que os apoquenta. Que se sentem do lado do Bem e que consideram estar a ser esquecidos. Que querem um líder que lhes diga que vai acabar com os maus e defender os bons. Uma América que muitos americanos não querem ver e que os europeus desdenham com ares de superioridade, mas que já não pode ser ignorada.   

Esta quinta-feira, Trump discursará triunfalmente em Cleveland, numa convenção que tem como símbolo um elefante em cima de uma guitarra eléctrica. Está previsto, nesse momento, a largada controlada de mais de 100 mil balões. Um momento pelo qual, como Trump certamente admitirá, ele esperou toda uma vida.

Trump era uma piada até deixar de o ser. 

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