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A semana "horribilis" de Trump em que a América voltou a dividir-se

As reacções do presidente norte-americano aos conflitos de Charlottesville podem ter aumentado o isolamento de Donald Trump ao fim de sete meses de mandato.

Reuters
19 de Agosto de 2017 às 15:00
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Quando no início dos anos 20 do século passado os escultores Henry Merwin Shrady e Leo Lentelli deram corpo à estátua de bronze do general Robert Edward Lee, talvez não imaginassem que o monumento, plantado no centro da cidade de Charlottesville, pudesse vir a gerar tanta controvérsia ao fim de 90 anos.

E muito menos que essa polémica viesse a envolver o mais alto responsável da nação, preso entre o politicamente incorrecto, as suas bases de apoio, a América dos valores fundamentais e a daqueles que nunca aceitaram a sua eleição.

Foi assim no fim-de-semana passado, quando degenerou em violência com contra-manifestantes a marcha de neo-nazis e afiliados do Ku Klux Klan convocada para se opor aos planos do conselho municipal de remover o monumento ao general – dono de escravos além de militar, e que é um símbolo para os supremacistas brancos.

Resultado: agressões, um carro lançado sobre os contra-manifestantes, um morto, mais de três dezenas de feridos, uma cidade em estado de emergência. E as palavras do presidente norte-americano, que em vez de apaziguar os ânimos, tiveram o oposto resultado de fazer chover críticas sobre a Casa Branca.

Quatro dias, quatro posições 

A condenação inicial de Donald Trump ao sucedido foi enérgica, pedindo no Twitter unidade contra "tudo o que significa o ódio" e negando qualquer espaço para "este género de violência na América". Mas foi horas mais tarde, quando voltou ao tema em declarações aos jornalistas, que a polémica estalou.

"Condenamos, nos termos mais fortes possíveis, esta exibição flagrante de ódio, fanatismo e violência vinda de muitos lados, de muitos lados. Isto vem acontecendo há muito tempo no nosso país". Três palavras - "de muitos lados", pondo em pratos iguais a "direita alternativa" e os contra-manifestantes – que desencadeiam uma torrente de censura na opinião pública.

Tanto que Trump se vê obrigado a voltar ao tema, quando apenas passa o segundo dia sobre os acontecimentos. Na segunda-feira, frente às câmaras, apresenta a sua terceira posição sobre o assunto, desta vez lendo uma declaração escrita: "O racismo é o mal - e aqueles que geram violência em seu nome são criminosos e bandidos, incluindo o KKK, os neo-nazis, os supremacistas brancos e outros grupos de ódio que repugnam o que valorizamos enquanto americanos." Não convence.

"É dífícil acreditar que Trump tenha qualquer credibilidade que possa ser posta em causa. Até as palavras do seu segundo testemunho sobre os acontecimentos de Charlottesville não eram suas – apenas palavras que alguém escreveu e que ele leu num esforço vão para parecer presidencial. É claro que era uma farsa que não poderia durar nem 24 horas," defende ao Negócios David Parish, vice-presidente do GF Parish Group, uma empresa de executive search de Minneapolis, Minnesota.

"As declarações de Trump sobre Charlottesville foram controversas porque simplesmente não condenaram a violência dos supremacistas brancos. O seu gabinete aparentemente produziu a declaração de segunda-feira [do presidente]. Este assunto tem sido uma distracção para a sua agenda," considera por seu lado John Herbst, director do Dinu Patriciu Eurasia, que promove a cooperação entre líderes regionais no think-tank Atlantic Council, localizado em Washington.

De facto a frase, que deveria ser suficiente para fechar a polémica, não a estancou. E um dia depois, quando Trump volta (pela quarta vez) ao assunto, a "hemorragia" fica declarada. É nessa terça-feira que, frente aos jornalistas e a jogar em casa – a partir da Trump Tower, em Nova Iorque - afirma: "Mas também havia boas pessoas, dos dois lados." A frase ateia uma conferência de imprensa já inflamada, com ásperas trocas de palavras entre presidente e jornalistas.

"O verdadeiro Donald Trump é o que se assumiu na terça-feira e tirou o seu capuz!," afirma Rebeca Sánchez-Roig ao Negócios. "A posição do presidente quanto aos supremacistas brancos não mudou. Donald Trump é um presidente divisivo, que tem incentivado preconceitos raciais e tentou defender da responsabilidade pelos seus actos de terrorismo doméstico os neo-nazis, o KKK e os supremacistas brancos que o levaram ao poder," acrescenta a sócia-gerente da Sánchez-Roig Law, P.A, firma de advogados sediada em Miami e especializada em assuntos de imigração.

Republicanos censuram, empresários afastam-se

As réplicas que se seguiram às declarações na Trump Tower dão sinais de aumentar o isolamento do presidente norte-americano. No partido republicano, os ex-candidatos presidenciais John McCain e Mitt Romney repudiam a equivalência moral estabelecida "entre racistas e americanos" e pedem a Trump que se retrate. "Não há neonazis bons", adiciona o líder republicano no Senado, Mitch McConnell.

O efeito estende-se ao mundo empresarial, tão incensado por Trump. Como peças de dominó, vários presidentes executivos de grandes empresas deixam os dois conselhos económicos criados no início do mandato do presidente para estimular a economia e o emprego. O argumento: não podem compactuar com declarações que questionam a igualdade e não se afastam suficientemente do ódio, fanatismo e supremacias de grupo.

Os afastamentos – que incluem os CEO de empresas como a Merck, a Intel ou a Under Armour - levaram o presidente a ironizar: por cada um que saísse, haveria muitos mais a querer entrar. Mas não houve tempo para isso. Um dia depois, confrontado com novas saídas, o presidente anuncia que o melhor é mesmo dissolver os dois conselhos.

Já o presidente da Apple, além de criticar a posição do presidente, oferece dois milhões de dólares a duas das principais organizações anti-ódio dos Estados Unidos, e oferece-se para duplicar o valor dos donativos que os seus funcionários entendam fazer.

E não são só os líderes empresariais a porem-se ao largo: segundo o Washington Post, pelo menos sete organizações de beneficência cancelaram as suas habituais galas anuais em Mar-a-Lago, a propriedade de Trump na Florida, citando a repercussão das palavras do presidente sobre os conflitos na Virgínia.

Meses de polémicas e saídas

O episódio de Charlottesville tornou-se assim no mais recente de uma sequência de momentos mediaticamente desafiantes para o 45.º presidente dos Estados Unidos, que apesar de tudo diz continuar a querer concentrar os seus esforços na criação de postos de trabalho e a colocar a "América primeiro" na cena internacional.

A lista é extensa para sete meses de Casa Branca: a saída do Acordo de Paris para o clima; as críticas à obsolescência e subfinanciamento da NATO; a denúncia de concorrência desleal da União Europeia e da China; o medir de forças com o México sobre a construção do muro; a renegociação forçada do tratado NAFTA; os limites à imigração e recepção de refugiados que foram contestados no tribunal; e mais recentemente a tensão com a Coreia do Norte, que colocou os líderes internacionais à beira de um ataque de nervos com o braço-de-ferro com Kim Jong-Un, bem como a possibilidade admitida de agir militarmente na Venezuela.

Internamente, enfrenta ainda a investigação das relações entre a sua campanha e responsáveis russos que poderá ter condicionado o resultado eleitoral das presidenciais (um em quatro americanos acredita que houve conluio) e teve de acomodar a derrota que foi não conseguir derrubar e substituir o pacote de cuidados de saúde conhecido por Obamacare.

"A falta de liderança, de popularidade e as políticas-chave potencialmente perigosas têm tido um impacto negativo na credibilidade dos Estados Unidos na cena mundial. Isto é evidente pelos comentários feitos por alguns dos mais firmes aliados dos EUA, que claramente não confiam na capacidade de Donald Trump de lidar com assuntos internacionais e conduzir o papel dos Estados Unidos no mundo," afirma Rebeca Sánchez-Roig.

"As suas afirmações são impensadas e sem noção. Ele diz o que lhe vem à cabeça, o único fio condutor é ser combativo e contrariar", acrescenta David Parish. "A verdade dos assuntos ou o impacto das suas palavras são completamente irrelevantes para Trump desde que contribuam para reforçar a sua base de apoio".

Coincidência ou não, é no final desta semana de controvérsia sobre a importância política e a influência dos nacionalistas brancos na base de apoio e na agenda de Trump que se dá mais um afastamento. O de Steve Bannon, o estratega da sua campanha presidencial, ligado à direita nacionalista e que se mantinha na Casa Branca apesar de já ter sido removido do cargo de conselheiro de segurança.

Uma saída decidida esta sexta-feira por Trump, que dá desta forma espaço a que o novo chefe de gabinete, John F. Kelly, ganhe o controlo da Casa Branca e dê à equipa do presidente a solidez e coerência que faltou à máquina de Trumo desde o primeiro dia do mandato, mergulhada em facções e fugas de informação.  

"A presidência de Trump por que lutámos e que ganhámos acabou. (...) Ainda temos um grande movimento, e faremos algo com esta presidência de Trump. Mas essa presidência acabou. Será outra coisa. E haverá todo o género de lutas e haverá dias bons e dias maus, mas essa presidência acabou," afirmou Bannon ao Weekly Standard. E, em declarações citadas pelo The New York Times, prometeu defender "de fora" a implementação da agenda de Donald Trump.

"Há menos um supremacista branco na Casa Branca, mas isso não muda o homem que está sentado atrás da secretária," reagiu o porta-voz do comité nacional democrata, Michael Tyler, citado pela Reuters, acusando Trump de há "décadas" instilar ódio nas comunidades. 

Bannon vem fechar, pelo menos por agora, uma lista de saídas que já vai longa desde que Trump chegou à Casa Branca. Reince Priebus, chefe de gabinete. Anthony Scaramucci e Michael Dubke, directores de comunicação. Sean Spicer e Michael Short, assessores de imprensa. Michael Flynn, conselheiro de segurança. Todos nomes escolhidos pelo presidente e que já foram dispensados – sem contar com James Comey, líder do FBI, e Sally Yates, procuradora-geral, que vinham da administração Obama e foram demitidos.


Ainda há volta atrás?

Com um registo tão turbulento e ainda quase três anos e meio de mandato pela frente, as possibilidades desta administração vir a conquistar no tempo que falta a confiança da maioria da opinião pública parecem escassas, pelo menos para os três norte-americanos ouvidos pelo Negócios.

"Trump precisa de aumentar apoio entre os independentes", sustenta John Herbst. "Para que isso aconteça deve evitar criar distracções e procurar obter vitórias nos assuntos que levaram à sua eleição: criar empregos, construir infra-estruturas e reformar a imigração," sustenta.

David Parish é mais céptico: "Esta presidência é um falhanço épico. (…) [Trump] tornou a política num género de religião, dividindo as pessoas em vez de as unir e confortar. Será que os princípios do respeito, da moralidade, da decência podem ser recuperados? Talvez em parte, mas infelizmente não estou muito optimista," admite.

Já Rebeca Sánchez-Roig afirma que Trump não tem interesse em mudar a opinião pública a seu favor e que prefere usar desculpas para justificar a sua "incapacidade" enquanto presidente.

"Com a negligência imprudente pela segurança do nosso país, a ideologia intolerante que dividiu mais do que uniu, as ideias isolacionistas que nos amaçam internacionalmente e a vontade descarada de defender o terrorismo com supremacistas brancos criados nos EUA, é tarde de mais para ter sucesso," define a advogada.

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