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Merkel aproveita oportunidade para revolucionar economia alemã

O pacote que foi aprovado no gabinete na segunda-feira seguinte, e era lei no fim da semana, coloca Merkel no comando da mais drástica reengenharia da economia alemã desde a reconstrução do pós-guerra.

01 de Junho de 2020 às 21:26
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Numa sombria sexta-feira de março, com a evidente devastação causada pelo coronavírus, as autoridades do governo da chanceler alemã Angela Merkel perceberam a necessidade de medidas extraordinárias para sustentar a maior economia da Europa.

 

Numa velocidade vertiginosa, assessores do Ministério da Economia elaboraram um programa de resgate no valor de 600 mil milhões de euros para evitar o colapso.

 

Com o aumento dos casos de covid-19 e restrições rigorosas sobre pessoas e empresas, houve pouco tempo para debate e nenhuma oposição significativa. No entanto, por detrás da nervosa gestão da crise, havia uma estratégia mais profunda que já estava em elaboração há meses.

 

A estratégia já tinha sido rejeitada por ser demasiado radical para o establishment político e empresarial quando proposta pela primeira vez no ano passado. Mas, com a crise como catalisador, o pacote foi aprovado no gabinete na segunda-feira seguinte e era lei no fim da semana. Coloca Merkel no comando da mais drástica reengenharia da economia alemã desde a reconstrução do pós-guerra.

 

Quando terminar, a chanceler terá implementado um tipo de capitalismo de estado na Alemanha, muito semelhante ao modelo da França e que até se inspira no sucesso da China. O plano dará às autoridades do governo de Berlim novos poderes para intervir na economia: escolherão entre vencedores e perdedores, semeando novas indústrias e preparando campeões nacionais. A compra de participações em empresas já não é um tabu, e a política de orçamento equilibrado foi descartada para libertar todo o poder do orçamento alemão.

 

Por outras outras palavras, o resgate histórico de 9 mil milhões de euros da Deutsche Lufthansa - incluindo a participação de 20% do governo e o direito de bloquear aquisições indesejadas - é apenas o início. Mais do que apenas garantir as ligações aéreas da Alemanha com o mundo exterior, o acordo estabelece um marco de como o governo Merkel pretende que a economia seja gerida na era pós-pandemia.

 

O apoio público à companhia aérea foi aprovado pelo recém-criado Fundo de Estabilidade Económica WSF, que inclui 100 mil milhões de euros de dinheiro dos contribuintes para investir diretamente e comprar empresas. O fundo foi criado durante aquele agitado fim de semana de março, mas as suas origens e a estratégia que está por detrás da sua criação foram desenhadas há mais de um ano pelo ministro da Economia Peter Altmaier.

 

Impulsionados pelo alarme dos gestores das principais empresas alemãs de que o país não estava a acompanhar a concorrência do exterior, o antigo chefe de gabinete de Merkel assumiu a responsabilidade de construir uma resposta. Depois de ter sido o próprio a escrever parte do documento, apresentou o programa em fevereiro de 2019 – muito antes de alguém ter ouvido falar sobre a covid-19.

 

Na indústria, a estratégia sugerida passava por dar autoridade ao governo para investir em tecnologia como inteligência artificial, células para baterias e energia limpa. Altmaier queria uma maior ligação à indústria para fomentar a criação de player globais no país.

 

O país passará de um "mero espectador de um processo que está em pleno andamento nos EUA e na China, para um criador", disse durante a apresentação da sua estratégia há mais de um ano.


O esforço do ministro foi enterrado numa avalanche de críticas.

 

O poderoso Mittelstand (pequenas e médias empresas) do setor industrial, detidas por famílias, atacou o plano que encarou como uma ameaça aos grandes negócios, enquanto os políticos do partido de Merkel deixaram claro que não estavam disponíveis para dar tanto poder ao governo. Os parceiros europeus também mostraram preocupação com o caminho de uma política protecionista "Alemanha Primeiro".

 

Altmaier foi forçado a desistir em novembro, altura em que apresentou uma versão leve do que pretendia, a que chamou de "Made in Germany: Industriestrategie 2030". A sua iniciativa tinha morrido, até que o coronavírus mudou as regras do jogo.

A nova estratégia da Alemanha mostra um país que está pronto para apostar forte na economia do futuro, mas manter-se fiel às tradições frugais da Alemanha. No resgate da Lufthansa, o governo comprou as ações por um valor que é inferior a um terço do valor do mercado.

 

"Demos ao mercado um sinal convincente de apoio à economia de mercado. Mas este também é um sinal de que o Governo alemão pretende defender a soberania tecnológica e económica deste país", disse Altmaier na conferência de imprensa a anunciar os termos do resgate.

 

Os contornos da nova estratégia alemã serão mais visíveis quando dentro de dias o governo de Merkel apresentar o muito aguardado plano de estímulos económicos.

 

Outro sinal da determinação do Governo em mudar o paradigma está no setor automóvel, que desta vez não vai ter mais apoios que os outros. Após a crise financeira de 2008 o governo de Merkel deu um forte apoio a empresas como a Volkswagen AGDaimler AG e BMW ao implementar um generoso programa de incentivo à compra de automóveis, que acabou por atrasar a migração para os elétricos.

 

Merkel já cancelou uma reunião com os principais responsáveis da indústria automóvel alemã devido à falta de entendimento sobre o programa de apoio ao setor. Merkel irritou-se com mais um apelo para que voltassem a ser os contribuintes a socorrer a indústria automóvel – um surpreendente desprezo de alguém que é conhecida por "chanceler auto".

 

Quando no início de maio anunciou o alívio de algumas medidas de contenção no movimento das pessoas, Merkel avisou que as companhias do setor automóvel teriam de pedir apoios como todas as outras, mais parecendo que estava a falar de start ups e não das titãs da economia alemã.

 

"Não estamos a falar de um recomeço da economia se o estado der mais dinheiro", avisou Merkel. "É verdade que vamos necessitar de um programa de estímulos, mas a iniciativa tem de partir das empresas".

 

O programa de estímulos é apenas uma peça do puzzle. Também estão a ser trabalhados programas estratégicos, como medidas para proteger empresas alemãs da concorrência estrangeira, reduzir a dependência das cadeias de fornecimento do exterior e impulsionar a indústria local.

 

É uma oportunidade única para Merkel se redimir dos erros passados. Mesmo antes da pandemia, a Alemanha tropeçava. A dependência de tecnologias intensivas em carbono, a rede digital nacional irregular e a burocracia revelaram falhas na gestão da chanceler da máquina de exportação do país.

 

Após a crise financeira, a sua estratégia era simplesmente estabilizar o navio e sair do caminho. Mas o mundo mudou significativamente desde então.

 

A aliança transatlântica com os Estados Unidos desgastou-se com o presidente Trump, e a China quer roubar o lugar da Alemanha como a maior potência mundial no setor industrial, ao mesmo tempo que reforça o seu papel no mercado europeu.

 

A China também está a comprar empresas alemãs, como a companhia de robótica Kuka, e o bilionário chinês Li Shufu é o maior acionista da Daimler, que fabrica os automóveis Mercedes. Merkel tem estado em confronto com Bruxelas, exigindo que a lei de regulação das aquisições seja alterada para dar maior relevo ao impacto das operações na Europa.

 

A ambição do plano do ministro alemão também está presente na proposta do fundo de recuperação da UE que foi apresentado por Merkel e Macron. O plano inclui regras mais leves para permitir ajudas de estado e facilitar a criação de empresas maiores e mais verdes.

 

"Vemos que outros países, como os EUA, Coreia do Sul, Japão ou a China, têm um forte peso de ‘campeões globais’", disse Merkel. "Acredito que esta abordagem é a resposta necessária".

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