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2007: "Porreiro, pá!" O fim da UE tal como a conhecemos

Visto a uma década de distância, o dia frio e soalheiro nos Jerónimos terá ficado marcado por uma ausência premonitória. Gordon Brown só chegou a tempo do brinde com Porto de 1957.

Visto a uma década de distância, o dia frio e soalheiro nos Jerónimos terá ficado marcado por uma ausência premonitória. Gordon Brown só chegou a tempo do brinde com Porto de 1957.
Miguel Baltazar
30 de Maio de 2017 às 22:00
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Terceira presidência portuguesa da União Europeia; 19 de Outubro; Parque das Nações; espumante Murganheira para fazer o brinde; e José Sócrates, que parecia não caber em si de contente. No final da conferência de imprensa, o primeiro-ministro estendia um abraço cúmplice ao arqui-rival, que três anos antes trocara a chefia do governo pela da Comissão Europeia e, ainda com os microfones abertos, sussurrava a Durão Barroso uma expressão trivial que acabou viral: "Porreiro, pá!"
 
Meio século após da sua fundação, a União Europeia via nascer de parto difícil o seu quinto Tratado. Já com o caso Freeport à perna, mas a governar em maioria e com a economia a crescer quase 2%, para Sócrates foi uma espécie de consagração europeia. A apoteose chegou dois meses depois, quando os líderes da UE (então a 27, ainda sem a Croácia) regressaram à capital portuguesa, para a cerimónia solene de assinatura do novo Tratado.

13 de Dezembro; o mesmo Mosteiro dos Jerónimos onde duas décadas antes se selara a adesão de Portugal e de Espanha à então Comunidade Económica Europeia; uma plateia de mais de 300 convidados, entre os quais os "quatro" das fotos icónicas de 1985 (Mário Soares, Jaime Gama, Hernâni Lopes e Rui Machete), quase todos os membros do Governo, destacados militantes do PSD e nenhum rosto de outras forças políticas – a "geringonça" parecia então uma impossibilidade absoluta. Cantou Dulce Pontes. Discursou Sócrates, Barroso e Hans-Gert Pöttering, presidente do Parlamento Europeu. Todos com um sublinhado comum: para realçar o "papel fundamental" desempenhado pela chanceler alemã na "pax institutionalis" que o novo Tratado prometia. Angela Merkel ainda era só bestial.

Após dez anos de reflexões, negociações e frustrações, o Tratado de Lisboa era o sucessor possível do malogrado projecto de Constituição Europeia, chumbado por franceses e holandeses dois anos antes. Recuperava o essencial das alterações então acordadas, mas ficou despido de tudo o que pudesse remeter para uma noção de super-Estado europeu, precisamente para evitar ao máximo a necessidade de novos referendos e, logo, de novos sobressaltos, no processo de ratificação. Na Irlanda, não houve volta a dar e o Tratado caiu – mas não morreu.

Ao adaptar as instituições da UE à adesão de 13 países da Europa central e oriental e, sobretudo, ao consagrar o novo peso da Alemanha alargada, Lisboa foi sinónimo da maior ruptura nas regras de funcionamento de uma União que acabava de completar meio século de existência: fim das presidências rotativas, fim anunciado de um comissário em permanência em Bruxelas (alteração que saltou para  convencer os irlandeses a votar "sim" num segundo referendo), alargamento das cooperações reforçadas (leia-se "via-quase-verde" a uma Europa a várias velocidades) e, pela primeira vez, criou-se uma  porta de saída do clube.

A  premonição de Lisboa

Visto a uma década de distância, esse dia frio e soalheiro nos Jerónimos terá ficado marcado por uma ausência premonitória. Gordon Brown, então primeiro-ministro do Reino Unido, mandou o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, David Milliband, à frente, ficou de fora da foto de família e só chegou a tempo do brinde com Porto de 1957 –  ano em que foi assinado o primeiro dos Tratados europeus, o de Roma – que antecedeu o almoço oferecido pelo Presidente Cavaco Silva ainda no velho Museu dos Coches, em Belém.

Escassos cinco anos depois, em 2013, David Cameron, anuncia que fará um referendo sobre a pertença à UE, usando a possibilidade aberta pelo Tratado de Lisboa. Diz que fará campanha pelo "sim", mas apenas se a Europa se reformar, devolvendo às capitais alguns poderes, em especial sobre as condições de acesso dos residentes dos demais países da União a prestações sociais. Os franceses protestam: "Quando se entra num clube de futebol, não se pode depois dizer que se quer jogar rugby", acusa Laurent Fabius, então chefe da diplomacia. Mas a Europa acabou por ceder. E Cameron fez campanha pelo "sim"; Gordon Brown também, ainda que apagado pela sombra de Jeremy Corbyn, possivelmente o mais eurocéptico dos líderes trabalhistas. Não bastou.

Na era dos "social media" e dos "factos alternativos", desorientada com a vaga de refugiados e amedrontada por vários atentados, a Europa tornou-se presa fácil para os populistas e sinónimo do que nunca foi, de "portas escancaradas". E a  madrugada de 24 de Junho de 2016 ficou como marco incontornável da História contemporânea.

Apoiada por 52% dos eleitores, a decisão do Reino Unido de sair da União contrariou o desejo dos mais jovens, dos que vivem na Londres cosmopolita e da maioria que votou na Irlanda do Norte e na Escócia (que recolocou na agenda política um referendo independentista), desafiando o que era sugerido pela maioria das sondagens e dado por adquirido pelo mundo político.

Haverá também um antes e depois para toda a União Europeia – e para o que ela significa, em termos de liberdade de circulação (de pessoas, bens, capitais) e de partilha de soberania e de perspectiva comum de futuro. Ao longo de quase seis décadas, a sua história pôde ser resumida em dois termos: alargamento (a mais Estados) e aprofundamento (com mais políticas comuns). A partir do "Brexit", o mais provável é que a Europa tente fazer (um pouco) mais, mas com menos países. 

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