Notícia
Virgolino Faneca quer ser um bufo ao serviço da secreta chinesa
Virgolino Faneca ambiciona tornar-se um espião chinês para denunciar os cidadãos do Império do Meio que caem em tentação e se desviam das orientações revolucionárias determinadas pelo comité central.
Caro Deng Fu
Venho por este meio apelar ao nosso passado em comum de estudantes na radiosa Kiev para solicitar os teus préstimos na obtenção de um emprego.
Lembras-te de Kiev? Tu com um lápis vermelho a sublinhar o livro vermelho do Mao e eu com uma revista Gina camuflada no meio do Capital do Marx para estimular a minha veia revolucionária? Tu a jogares pingue-pongue e eu a jogar o meu futuro numa garrafa de vodka? Tu agarrado aos livros a bem do teu país, eu agarrado à Tatiana, a bem da miscigenação de raças?
De facto, dávamo-nos muito bem, porque eu não percebia patavina do que tu dizias e tu não percebias patavina do que eu dizia. Um problema de somenos que agora podemos ultrapassar usando um daqueles tradutores automáticos do Google.
Acontece que soube que tu ocupas actualmente um lugar importante no comité central do glorioso partido chinês e achei que, em nome do passado e também de umas fotografias comprometedoras que tenho da tua pessoa, és a pessoa ideal para satisfazer o meu pedido.
E não. Não quero um emprego qualquer numa das muitas empresas que vocês compraram em Portugal para ganhar muito dinheiro e fazer pouco. O meu orgulho impede-me disso.
O que quero mesmo é ser útil ao PC chinês e fazer parte dessa estratégia revolucionária que passa por atacar o capitalismo tornando-se capitalista, um percurso árduo que exige perseverança e princípios sólidos em matéria ideológica.
Assim sendo, peço-te que me tornes um membro do MSS, os serviços secretos chineses, incumbindo-me da tarefa de vigiar os teus conterrâneos em Portugal e reportando qualquer desvio individual que coloque em causa as determinações do Comité Central. Por exemplo, sei que os chineses de uma empresa da qual não digo o nome, começada por "F" e acabada em "N", andam a ler os livros da Cristina Ferreira e do José Rodrigues dos Santos, em vez de estudarem laboriosamente as recomendações emanadas do sexto plenário do 18.º congresso do PC chinês, o que claramente é uma prática revisionista. Depois há o caso dos quadros de uma outra empresa que tem um nome parecido ao escritor japonês, o Mishima, os quais andam por aí a guiar carros norte-americanos e a ouvir Justin Bieber e a Taylor Swift em vez de escutarem Li Huan, um intérprete de grande gabarito e versátil, capaz de cantar pop e rock, mas também óperas tradicionais e música folclóricas. Diz-me lá se estes tipos não são desviacionistas? Cá para mim deviam era ser enviados para um campo de reeducação pelo trabalho até entenderem, de uma vez por todas, que não podem conspurcar o seu espírito com a frivolidade ocidental.
Imagino que te devas estar a questionar sobre as minhas apetências para o desempenho desta missão. Descansa que tenho. E muitas. Por exemplo, vigiei durante 15 anos a minha vizinha Irene até descobrir que ela tinha um caso com o carteiro e usei esse facto em meu benefício, fazendo chantagem em moldes que tu podes imaginar, o que, não abonando a favor do meu carácter, mostra uma total ausência de valores, condição para ser um bom espião.
Assim sendo, caro Deng, aguardo instruções, para iniciar as minhas funções. E cuidado com a resposta porque sei umas coisinhas em relação ao teu irmão, que por acaso está aqui por Portugal, e há sempre o risco de o partido receber uma denúncia anónima. Claro que serviços destes têm de ser convenientemente remunerados, sendo que o meu referencial é o ordenado do presidente da Caixa, mais duas casas e dois carros, tudo aos pares para não se sentirem sozinhos.
Despeço-me com saudade, este teu,
Virgolino Faneca
Venho por este meio apelar ao nosso passado em comum de estudantes na radiosa Kiev para solicitar os teus préstimos na obtenção de um emprego.
De facto, dávamo-nos muito bem, porque eu não percebia patavina do que tu dizias e tu não percebias patavina do que eu dizia. Um problema de somenos que agora podemos ultrapassar usando um daqueles tradutores automáticos do Google.
Acontece que soube que tu ocupas actualmente um lugar importante no comité central do glorioso partido chinês e achei que, em nome do passado e também de umas fotografias comprometedoras que tenho da tua pessoa, és a pessoa ideal para satisfazer o meu pedido.
E não. Não quero um emprego qualquer numa das muitas empresas que vocês compraram em Portugal para ganhar muito dinheiro e fazer pouco. O meu orgulho impede-me disso.
O que quero mesmo é ser útil ao PC chinês e fazer parte dessa estratégia revolucionária que passa por atacar o capitalismo tornando-se capitalista, um percurso árduo que exige perseverança e princípios sólidos em matéria ideológica.
Assim sendo, peço-te que me tornes um membro do MSS, os serviços secretos chineses, incumbindo-me da tarefa de vigiar os teus conterrâneos em Portugal e reportando qualquer desvio individual que coloque em causa as determinações do Comité Central. Por exemplo, sei que os chineses de uma empresa da qual não digo o nome, começada por "F" e acabada em "N", andam a ler os livros da Cristina Ferreira e do José Rodrigues dos Santos, em vez de estudarem laboriosamente as recomendações emanadas do sexto plenário do 18.º congresso do PC chinês, o que claramente é uma prática revisionista. Depois há o caso dos quadros de uma outra empresa que tem um nome parecido ao escritor japonês, o Mishima, os quais andam por aí a guiar carros norte-americanos e a ouvir Justin Bieber e a Taylor Swift em vez de escutarem Li Huan, um intérprete de grande gabarito e versátil, capaz de cantar pop e rock, mas também óperas tradicionais e música folclóricas. Diz-me lá se estes tipos não são desviacionistas? Cá para mim deviam era ser enviados para um campo de reeducação pelo trabalho até entenderem, de uma vez por todas, que não podem conspurcar o seu espírito com a frivolidade ocidental.
Imagino que te devas estar a questionar sobre as minhas apetências para o desempenho desta missão. Descansa que tenho. E muitas. Por exemplo, vigiei durante 15 anos a minha vizinha Irene até descobrir que ela tinha um caso com o carteiro e usei esse facto em meu benefício, fazendo chantagem em moldes que tu podes imaginar, o que, não abonando a favor do meu carácter, mostra uma total ausência de valores, condição para ser um bom espião.
Assim sendo, caro Deng, aguardo instruções, para iniciar as minhas funções. E cuidado com a resposta porque sei umas coisinhas em relação ao teu irmão, que por acaso está aqui por Portugal, e há sempre o risco de o partido receber uma denúncia anónima. Claro que serviços destes têm de ser convenientemente remunerados, sendo que o meu referencial é o ordenado do presidente da Caixa, mais duas casas e dois carros, tudo aos pares para não se sentirem sozinhos.
Despeço-me com saudade, este teu,
Virgolino Faneca
Quem é Virgolino FanecaVirgolino Faneca é filho de peixeiro (Faneca é alcunha e não apelido) e de uma mulher apaixonada pelos segredos da semiótica textual. Tem 48 anos e é licenciado em Filologia pela Universidade de Paris, pequena localidade no Texas, onde Wim Wenders filmou. É um "vasco pulidiano" assumido e baseia as suas análises no azedo sofisma: se é bom, não existe ou nunca deveria ter existido. Dele disse, embora sem o ler, Pacheco Pereira: "É dotado de um pensamento estruturante e uma só opinião sua vale mais do que a obra completa de Nuno Rogeiro". É presença constante nos "Prós e Contras" da RTP1. Fica na última fila para lhe ser mais fácil ir à rua fumar e meditar. Sobre o quê? Boa pergunta, a que nem o próprio sabe responder. Só sabe que os seus escritos vão mudar a política em Portugal. Provavelmente para o rés-do-chão esquerdo, onde vive a menina Clotilde, a sua grande paixão. O seu propósito é informar epistolarmente familiares, amigos, emigrantes, imigrantes, desconhecidos e extraterrestres, do que se passa em Portugal e no mundo. Coisa pouca, portanto.