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Virgolino Faneca explica como Tancos arrasou a Casa de Papel
O pecado da luxúria plasmado no visionamento da "Casa de Papel" revelou-se profundamente inconsequente mas serviu para tirar as manias aos espanhóis. "Casa de Papel"? Orem tomem lá com Tancos e embrulhem.
Perdoa o desabafo, mas não sabia a quem me dirigir confrontado com tamanha ignomínia. Como bem sabes, resisti estoicamente à Netflix e, quando o pessoal falava das maravilhosas séries transmitidas pelo canal, desviava o assunto para o AXN ou para a Fox. Aliás, à data desconhecia que se podia aceder à Netflix através da Playstation e de cada vez que me falavam da "Casa de Papel" percorria-me as entranhas, chegando do céu-da-boca, uma forte sensação de vómito.
Acontece, Ermelinda, que pequei e estou duplamente arrependido, como de seguida te explicarei. Primeiro, porque sucumbi aos cantos de sereia da Netflix e entreguei-me à luxúria da "Casa de Papel", levado pelos argumentos laudatórios em torno da qualidade da dita, do género "é espectacular, tens mesmo de ver", "se não vês a 'Casa de Papel', és um ovo podre", "porra, afinal os espanhóis fazem coisas de jeito", e "é melhor que o 'Prision Break'", entre outros.
Foi assim que comecei a ver a série e acabei a trautear "Bella Ciao" como se não houvesse amanhã, até que surgiu a malfadada terça-feira, 25 de Setembro, dia que deitou por terra todas as construções epistemológicas que havia realizado.
Nesta terça-feira, quando tecia loas, pela enésima vez, à narrativa da "Casa de Papel", fui confrontado com a notícia de que o roubo de armamento em Tancos não tinha sido uma história rocambolesca capaz de medir meças à guerra do Solnado, mas outrossim uma aventura real - é que o assaltante, arrependido do crime, terá contado com a cumplicidade de elementos da Polícia Judiciária Militar e da GNR para devolver o material furtado. Resultado, foram detidas oito pessoas, entre as quais o director da Polícia Judiciária Militar, e a coisa tem tantas pontas soltas que promete doses substantivas de suspense, intriga, encenação, conspiração, traição e afins, nas próximas semanas.
Ou seja, o caso foi uma epifania, na medida em que me permitiu concluir que o argumento de "Casa de Papel" é tíbio quando comparado com Tancos. Tancos tem tudo (faltam personagens femininas, mas lá se chegará) em muito mais e melhor do que a supracitada série e ingredientes que permitirão produzir uma série de tremendo sucesso para um qualquer canal de televisão que não seja a Netflix, porque afinal anda a vender gato por lebre.
Até já estou a imaginar tudo.
Nome da série: "Foi em Tancos que tudo aconteceu".
Elenco: Toy (no papel do coronel da PJ Militar e a interpretar a canção do genérico "Coração não tem idade"); Azeredo Lopes (a fazer de si mesmo, ou seja, de ministro da Defesa); Manuel Luís Goucha (a dar corpo ao assaltante arrependido) e Luciana Abreu (alguma coisa se há-de arranjar para a miúda, com um postiço até pode fazer de militar e depois no fim descobre-se que, afinal, é uma mulher).
Participações especiais: Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Rio, António Costa e Assunção Cristas.
Local das filmagens: Vila Nova da Barquinha.
Produção: Chefia do Estado-Maior do Exército.
Portanto, Ermelinda, há males que surgem por bem. Cortei as amarras com a Netflix e posso voltar a dizer, sem peias, que os portugueses fazem tudo melhor do que os espanhóis.
Enquanto aguardo que se ultime a série, vou-me entretendo a ver a "Patrulha Pata" de modo a preparar-me para a acção que será servida em "Foi assim que aconteceu em Tancos". Pelo caminho, aguardo que me indiques o castigo a cumprir por ter falhado o nosso trato, embora desconfie que me inflijas a punição maior, a de ver "O Preço Certo", sendo a voz de Fernando Mendes substituída, em 'loop' pelas cantigas de Maria Leal. Prometo aguentar estoicamente.
Um xi deste que te adora,
Virgolino Faneca
Quem é Virgolino Faneca
Virgolino Faneca é filho de peixeiro (Faneca é alcunha e não apelido) e de uma mulher apaixonada pelos segredos da semiótica textual. Tem 48 anos e é licenciado em Filologia pela Universidade de Paris, pequena localidade no Texas, onde Wim Wenders filmou. É um "vasco pulidiano" assumido e baseia as suas análises no azedo sofisma: se é bom, não existe ou nunca deveria ter existido. Dele disse, embora sem o ler, Pacheco Pereira: "É dotado de um pensamento estruturante e uma só opinião sua vale mais do que a obra completa de Nuno Rogeiro". É presença constante nos "Prós e Contras" da RTP1. Fica na última fila para lhe ser mais fácil ir à rua fumar e meditar. Sobre o quê? Boa pergunta, a que nem o próprio sabe responder. Só sabe que os seus escritos vão mudar a política em Portugal. Provavelmente para o rés-do-chão esquerdo, onde vive a menina Clotilde, a sua grande paixão. O seu propósito é informar epistolarmente familiares, amigos, emigrantes, imigrantes, desconhecidos e extraterrestres, do que se passa em Portugal e no mundo. Coisa pouca, portanto.