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Virgolino Faneca explica como Tancos arrasou a Casa de Papel

O pecado da luxúria plasmado no visionamento da "Casa de Papel" revelou-se profundamente inconsequente mas serviu para tirar as manias aos espanhóis. "Casa de Papel"? Orem tomem lá com Tancos e embrulhem.

28 de Setembro de 2018 às 17:00
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Dilecta Ermelinda

Perdoa o desabafo, mas não sabia a quem me dirigir confrontado com tamanha ignomínia. Como bem sabes, resisti estoicamente à Netflix e, quando o pessoal falava das maravilhosas séries transmitidas pelo canal, desviava o assunto para o AXN ou para a Fox. Aliás, à data desconhecia que se podia aceder à Netflix através da Playstation e de cada vez que me falavam da "Casa de Papel" percorria-me as entranhas, chegando do céu-da-boca, uma forte sensação de vómito.

Eu e tu éramos uma espécie de irredutíveis gauleses em cujo castelo intelectual estava vedada a entrada da dita Netflix. Se bem te lembras, chegámos inclusive a combinar mandar imprimir uns autocolantes com os dizeres "Netflix? Não, obrigado", com um sol risonho no meio, plagiando ostensivamente uns outros autocolantes que fizeram furor na década de 80, em que estava estampada a frase "Nuclear? Não, obrigado".

Acontece, Ermelinda, que pequei e estou duplamente arrependido, como de seguida te explicarei. Primeiro, porque sucumbi aos cantos de sereia da Netflix e entreguei-me à luxúria da "Casa de Papel", levado pelos argumentos laudatórios em torno da qualidade da dita, do género "é espectacular, tens mesmo de ver", "se não vês a 'Casa de Papel', és um ovo podre", "porra, afinal os espanhóis fazem coisas de jeito", e "é melhor que o 'Prision Break'", entre outros.

Foi assim que comecei a ver a série e acabei a trautear "Bella Ciao" como se não houvesse amanhã, até que surgiu a malfadada terça-feira, 25 de Setembro, dia que deitou por terra todas as construções epistemológicas que havia realizado.

Nesta terça-feira, quando tecia loas, pela enésima vez, à narrativa da "Casa de Papel", fui confrontado com a notícia de que o roubo de armamento em Tancos não tinha sido uma história rocambolesca capaz de medir meças à guerra do Solnado, mas outrossim uma aventura real - é que o assaltante, arrependido do crime, terá contado com a cumplicidade de elementos da Polícia Judiciária Militar e da GNR para devolver o material furtado. Resultado, foram detidas oito pessoas, entre as quais o director da Polícia Judiciária Militar, e a coisa tem tantas pontas soltas que promete doses substantivas de suspense, intriga, encenação, conspiração, traição e afins, nas próximas semanas.

Ou seja, o caso foi uma epifania, na medida em que me permitiu concluir que o argumento de "Casa de Papel" é tíbio quando comparado com Tancos. Tancos tem tudo (faltam personagens femininas, mas lá se chegará) em muito mais e melhor do que a supracitada série e ingredientes que permitirão produzir uma série de tremendo sucesso para um qualquer canal de televisão que não seja a Netflix, porque afinal anda a vender gato por lebre.

Até já estou a imaginar tudo.

Nome da série: "Foi em Tancos que tudo aconteceu".

Elenco: Toy (no papel do coronel da PJ Militar e a interpretar a canção do genérico "Coração não tem idade"); Azeredo Lopes (a fazer de si mesmo, ou seja, de ministro da Defesa); Manuel Luís Goucha (a dar corpo ao assaltante arrependido) e Luciana Abreu (alguma coisa se há-de arranjar para a miúda, com um postiço até pode fazer de militar e depois no fim descobre-se que, afinal, é uma mulher).

Participações especiais: Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Rio, António Costa e Assunção Cristas.

Local das filmagens: Vila Nova da Barquinha.

Produção: Chefia do Estado-Maior do Exército.

Portanto, Ermelinda, há males que surgem por bem. Cortei as amarras com a Netflix e posso voltar a dizer, sem peias, que os portugueses fazem tudo melhor do que os espanhóis.

Enquanto aguardo que se ultime a série, vou-me entretendo a ver a "Patrulha Pata" de modo a preparar-me para a acção que será servida em "Foi assim que aconteceu em Tancos". Pelo caminho, aguardo que me indiques o castigo a cumprir por ter falhado o nosso trato, embora desconfie que me inflijas a punição maior, a de ver "O Preço Certo", sendo a voz de Fernando Mendes substituída, em 'loop' pelas cantigas de Maria Leal. Prometo aguentar estoicamente.

Um xi deste que te adora,

Virgolino Faneca
 

Quem é Virgolino Faneca

Virgolino Faneca é filho de peixeiro (Faneca é alcunha e não apelido) e de uma mulher apaixonada pelos segredos da semiótica textual. Tem 48 anos e é licenciado em Filologia pela Universidade de Paris, pequena localidade no Texas, onde Wim Wenders filmou. É um "vasco pulidiano" assumido e baseia as suas análises no azedo sofisma: se é bom, não existe ou nunca deveria ter existido. Dele disse, embora sem o ler, Pacheco Pereira: "É dotado de um pensamento estruturante e uma só opinião sua vale mais do que a obra completa de Nuno Rogeiro". É presença constante nos "Prós e Contras" da RTP1. Fica na última fila para lhe ser mais fácil ir à rua fumar e meditar. Sobre o quê? Boa pergunta, a que nem o próprio sabe responder. Só sabe que os seus escritos vão mudar a política em Portugal. Provavelmente para o rés-do-chão esquerdo, onde vive a menina Clotilde, a sua grande paixão. O seu propósito é informar epistolarmente familiares, amigos, emigrantes, imigrantes, desconhecidos e extraterrestres, do que se passa em Portugal e no mundo. Coisa pouca, portanto.

 

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