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Virgolino Faneca exige a higienização do Plano Nacional de Leitura
Virgolino, Preciosa e Tibúrcio insurgem-se contra asjavascript:; poucas-vergonhas que estão disponíveis no plano nacional de leitura e pedem que os Lusíadas sejam amputados do libidinoso canto nono.
Caro ministro da Educação, venho por este meio solicitar-lhe que bana o livro "Auto da Barca do Inferno" do Plano Nacional de Leitura por conter linguagem susceptível de ferir os meus educandos, os educandos da dona Preciosa, a minha vizinha do 4.º C, que não pede tomates na mercearia por considerar a palavra uma obscenidade, e ainda os educandos do Tibúrcio, que fazem o sinal da cruz e rezam três ave-maria antes de comerem punheta de bacalhau, um prato de que o pai gosta muito, mas o enche de remorsos. Vá-se lá saber porquê.
A realidade é que os escritores têm a mania de que a moral e os bons costumes são coisas para usar em tudo menos nas respectivas obras. Foi a coberto deste sentimento de impunidade que o Valter escreveu este trecho literário no seu livro "O Nosso Reino": "E a tua tia sabes de que tem cara, de puta, sabes o que é, uma mulher tão porca que fode com todos os homens e mesmo que tenha racha para foder deixa que lhe ponha a pila no cu." Nunca li tanta pouca-vergonha em tão poucas linhas.
E agora vamos ao Gil, cuja circunstância de ter escrito em português arcaico não o deve eximir de ter tratamento distinto. Por exemplo, no dito auto, coloca o Diabo a solicitar "Abaxa má-hora esse cu!", o Anjo a proferir um conselho "Não vindes vós de maneira/pera ir neste navio./Esse outro vai mais vazio:/e a cadeira entrará/e o rabo caberá/e todo o vosso senhorio", o Sapateiro a dizer "Arrenagaria eu da festa/e da puta da barcagem!" e ainda um Judeu a declamar (cheira-me a anti-semitismo) "Por vida do Semifará/Que me passeis o cabrão!/Querês mais outro testão?/nenhum bode há-de vir cá". Ora, se isto não é também pouca-vergonha, vou ali já e venho.
Fui e já voltei para acrescentar o seguinte:
- Senhor ministro, é uma ignomínia contra-argumentar que as crianças conhecem desde cedo esta linguagem e estão expostas a ela nas redes sociais ou em programas de entretenimento como a "Casa dos Segredos", ou até que as escutam da boca de colegas cujos pais têm critérios de educação muito baixos, concluindo por isso que estes livros conspícuos são admissíveis.
Nós, eu, a Preciosa e o Tibúrcio, que praticamos a castidade verbal, achamos veementemente que não e no decurso de um jogo de strip póquer, o qual me permitiu ficar agradavelmente surpreendido com a secura de carnes da minha vizinha, concertámos esta posição, a de exigir a retirada imediata do "Auto da Barca do Inferno" do Plano Nacional de Leitura.
Aliás, como arautos da higienização moral, consideramos que devem ser banidos do Plano Nacional de Leitura todos os livros que contenham palavras de natureza vernacular que o pudor me impede de reproduzir, e outros devem ser amputados de partes libidinosas, sendo que o canto nono dos Lusíadas é um caso paradigmático. Pelo exposto, aguardo um despacho favorável e subscrevo-me.
Com deferência,
Virgolino Faneca
Quem é Virgolino Faneca
Virgolino Faneca é filho de peixeiro (Faneca é alcunha e não apelido) e de uma mulher apaixonada pelos segredos da semiótica textual. Tem 48 anos e é licenciado em Filologia pela Universidade de Paris, pequena localidade no Texas, onde Wim Wenders filmou. É um "vasco pulidiano" assumido e baseia as suas análises no azedo sofisma: se é bom, não existe ou nunca deveria ter existido. Dele disse, embora sem o ler, Pacheco Pereira: "É dotado de um pensamento estruturante e uma só opinião sua vale mais do que a obra completa de Nuno Rogeiro". É presença constante nos "Prós e Contras" da RTP1. Fica na última fila para lhe ser mais fácil ir à rua fumar e meditar. Sobre o quê? Boa pergunta, a que nem o próprio sabe responder. Só sabe que os seus escritos vão mudar a política em Portugal. Provavelmente para o rés-do-chão esquerdo, onde vive a menina Clotilde, a sua grande paixão. O seu propósito é informar epistolarmente familiares, amigos, emigrantes, imigrantes, desconhecidos e extraterrestres, do que se passa em Portugal e no mundo. Coisa pouca, portanto.