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Venezuela: Uma economia de guerra

A discussão em torno da crise venezuelana tem-se centrado nas divergências políticas e na violência nas ruas, mas importa debater os motivos da indiscutível crise económica vivida pelo país. Como colapsou a economia da Venezuela?

Ueslei Marcelino/Reuters
04 de Agosto de 2017 às 11:00
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Um terço da economia destruída em poucos anos, a maior inflação do mundo, falta de comida e medicamentos, reservas de divisas a esgotarem-se e um sistema político à beira do colapso. Em pouco tempo, a Venezuela passou de uma das nações mais ricas da América Latina para uma economia em ruínas. No ano passado, nenhum país teve um desempenho tão mau. Os paralelismos possíveis fazem-se com uma economia de guerra. E a culpa não é só do petróleo. Políticas erradas, um sistema de câmbio esquizofrénico e um Estado capturado pela corrupção desempenham um papel importante. O embate político materializado nas explosões e mortes nas ruas de Caracas tem aqui algumas das suas raízes.

O Governo venezuelano deixou de publicar estatísticas oficiais, o que significa que é necessário recorrer a dados de organizações locais e instituições internacionais como o Fundo Monetário Internacional. Segundo o FMI, a economia da Venezuela afundou 18% no ano passado, depois de já ter contraído 6% no ano anterior. As previsões para 2017 não são menos cinzentas: -12%. Por esta altura, o desemprego já ultrapassa os 20% e a trajectória actual sugere uma subida em direcção aos 30% até 2019. Ainda assim, provavelmente os números mais alarmantes vêm dos preços. Os últimos dados oficiais - do final de 2015 - já apontavam para um sobreaquecimento e o FMI diz que as coisas só pioraram desde então, com uma inflação superior a 250% em 2016 e de mais de 700% este ano.

Sem receitas de petróleo e com o bolívar em queda livre, comprar produtos ao exterior tornou-se uma tarefa hercúlea. O Governo decidiu imprimir dinheiro para cumprir as suas obrigações internacionais, ao mesmo tempo que aprovou sucessivos aumentos do salário mínimo e introduziu maior controlo sobre a oferta e os preços dos bens. A torneira dos mercados foi fechando e o país ficou dependente de empréstimos bilaterais de aliados (China) e de crédito a condições muito penalizadoras (como a recente venda de obrigações à Goldman Sachs). O bolívar continuou a afundar e, com ele, as importações (-40%, -23% e -18% nos últimos três anos). As prateleiras dos supermercados ficaram cada vez mais vazias e, segundo as agências, quase nove em cada dez medicamentos estão em falta. A inflação não parou de galopar. Há subidas quase diárias de preços e um cabaz de mercearia básico custava em Março quatro vezes o salário mínimo.

"Poderíamos dizer que é uma economia de tempo de guerra. Mas os números da Venezuela [de 2016] são piores do que uma economia de guerra", sublinha, à Bloomberg, Jose Manuel Puente, economista do Instituto de Estudos Avançados em Administração, de Caracas. À mesma agência, o historiador Tomás Straka, da Universidade Católica Andrés Bello, diz que é necessário recuar à Guerra da Independência (1810-1823) para encontrar outro caso semelhante de fome, abandono de casas e emigração em massa.

Segundo um inquérito feito por três universidades venezuelanas em 2016, a percentagem de pessoas que diz comprar frango caiu de 80% para 45%. Outras carnes tiveram uma quebra semelhante e também há menos gente a comprar açúcar e carne. Por outro lado, o consumo de batatas (e outros tubérculos) disparou de 10% para 50%. Um salto acompanhado pelas hortaliças. Das mais de seis mil pessoas entrevistadas, mais de 93% disseram não ter dinheiro suficiente comprar os alimentos que querem e sete em dez admitiram ter perdido peso no último ano, numa média de quase nove quilos. O mesmo inquérito conclui que metade de população vive hoje naquilo que se considera ser uma situação de pobreza extrema, mais do dobro do que em 2014. Um indicador que tinha melhorado substancialmente durante a segunda metade da década passada.

Os poucos dados oficiais que vão sendo conhecidos mostram a degradação das condições sociais. Em Maio, foi revelado que os casos de malária dispararam 76% em 2016 para mais de 240 mil. No mesmo ano, a mortalidade materna aumentou 66% e a mortalidade infantil, 30%. Ao mesmo tempo, a criminalidade violenta tem-se agravado. Aos protestos violentos dos últimos meses junta-se a segunda maior taxa de homicídio do mundo.

Em 2008, o país tinha o segundo PIB per capita mais elevado entre os maiores países da América Latina (atrás do Chile). Hoje, Brasil, Argentina, Panamá e Uruguai estão à sua frente e o México está perto de o ultrapassar. A dívida externa do país mais do que triplicou entre 2006 e 2014. Como chegámos aqui?

Petróleo: os excrementos do diabo

"Daqui a dez anos, daqui a vinte anos, vocês vão ver. O petróleo será a nossa ruína. O petróleo é o excremento do diabo." O aviso foi feito três anos depois da crise petrolífera de 1973, pelo ex-ministro da Energia, Juan Pablo Pérez Alfonzo. De facto, com ou sem socialismo, há décadas que os destinos da Venezuela andam de braço dado com o ouro negro. Com as maiores reservas de petróleo do mundo, a Venezuela parece um candidato perfeito a integrar a lista dos afectados por aquilo a que se chama a "maldição dos recursos naturais".

O petróleo tem sido a explicação dada para esta crise. A história é simples: Hugo Chávez, eleito em 1998, aproveitou a subida do preço do petróleo durante a década passada para expandir significativamente o papel social do Estado venezuelano. Entre 2001 e 2013, a economia cresceu a cerca de 3,5% ao ano. A expansão significativa dos programas sociais teve resultados no terreno, com uma redução forte da pobreza (dados do Banco Mundial mostram que caiu para metade), aumentos relevantes da taxa de escolarização, descida do desemprego e da mortalidade infantil.

A queda abrupta da matéria-prima que se começou a observar a partir de 2014 - de mais de 100 dólares o barril para perto de 50 - colocou em xeque a capacidade do Governo para financiar os gastos com que se comprometeu. Os cofres venezuelanos estão totalmente dependentes da venda de petróleo, que representa 95% das suas exportações e, em conjunto com o gás natural, um quarto de toda a economia. Segundo contas do FMI feitas em 2015, a Venezuela precisa de petróleo entre 110 e 120 dólares/barril para equilibrar o orçamento.

No entanto, os problemas da Venezuela não se esgotam na flutuação do mercado de matérias-primas. "O maior problema é o sistema de câmbio, que prendeu a economia numa espiral de inflação-depreciação e numa terrível depressão", explica, ao Negócios, Mark Weisbrot, co-director do Center For Economic Policy Research, um "think-tank" de Washington alinhado à esquerda, onde tem defendido o chavismo, mas sugerido medidas urgentes.

Na prática, existem três mecanismos diferentes. O primeiro - utilizado para importar bens essenciais, como bens alimentares e medicamentos - ronda os 10 bolívares por cada dólar. Uma segunda taxa ronda hoje os 2.700 bolívares/dólar. O problema é que estes câmbios são incomportáveis para a população, que recorre cada vez mais ao mercado negro, onde o bolívar perde valor a cada dia que passa: quinta-feira, eram necessários mais de 15.000 para comprar um dólar.

Estas diferenças são um enorme incentivo à corrupção. As empresas, responsáveis públicos e militares que conseguem aceder a dólares mais "baratos" podem comprar produtos para depois os venderem a preços mais altos no mercado negro. Além de contribuir para depauperar os "stocks" de bens, o sistema serve de estímulo à inflação. Economistas como Weisbrot têm aconselhado o Governo a abandonar este sistema e passar a uma única taxa que flutue no mercado, mas o Executivo teme uma desvalorização ainda mais acentuada da moeda (e mais inflação). Os críticos atribuem a inacção de Nicolás Maduro ao seu desejo de proteger as elites militares, das quais o Presidente venezuelano depende para se manter no poder. O que nos traz a…

... um Estado capturado pela corrupção

Segundo a Transparency International, entre 176 países analisados, a Venezuela é o 166.º mais corrupto (Portugal é o 29.º). A corrupção tem raízes mais antigas e profundas, mas com Chávez os seus tentáculos alastraram pelos corredores do Estado e das empresas públicas. As instituições democráticas saíram enfraquecidas. Maduro, pressionado pela escassez de alimentos, colocou a estrutura militar a gerir a oferta de bens essenciais, como arroz e manteiga. Uma reportagem da Associated Press, publicada no início deste ano, dava conta de locais de venda geridos pelo exército, onde eram praticados preços 100 vezes superiores aos fixados pelo Governo.


Maduro cedeu aos militares a gestão dos bens alimentares do país. Reportagem revelou locais de venda de produtos a preços 100 vezes superiores aos fixados pelo Governo.


"Ultimamente, a alimentação é melhor negócio do que as drogas", dizia à agência o já reformado general Cliver Alcala, antigo responsável pelas fronteiras do país. "Os militares são os responsáveis pela gestão dos bens alimentares e eles não o vão fazer sem tirarem a parte deles." A AP fala ainda com empresários que admitem ter subornado ministros de Maduro e identifica "offshores" de familiares do actual inspector-geral das Forças Armadas.

Numa entrevista há pouco mais de um ano, Roland Denis, ex-ministro adjunto do Planeamento e Desenvolvimento (2002-2003) - e crítico do actual Governo -, diz que desde 2005 "uma casta burocrática e corrupta começou a tomar posições de liderança dentro do partido e do Governo". A subida de Maduro ao poder trouxe uma "apropriação desavergonhada do rendimento do petróleo por sectores transnacionais, monopolistas e financeiros, com o consentimento desta casta corrupta".

O problema destas explicações é que parecem passar ao lado das políticas levadas a cabo por Chávez e Maduro, como se a actual crise lhes fosse alheia. Por vezes, os defensores do regime explicam a crise da mesma forma como falariam de um asteróide a atingir a Terra. A verdade é que o chavismo está há quase duas décadas no poder, sem ter sido capaz de diversificar a economia venezuelana e torná-la menos dependente da volatilidade petrolífera. Foram feitas nacionalizações em massa, houve mais regulação aprovada, mais subsídios e um maior controlo sobre o funcionamento do mercado. Por exemplo, as empresas queixam-se que a fixação de preços feita pelo Governo as fez desistir de produzir. Economistas mais liberais notam que a supressão de mecanismos de mercado é precisamente o que está por trás da crise venezuelana.

Mais à esquerda argumenta-se que o sector privado continua a representar a maior fatia da actividade económica do país e que, pelo contrário, o problema de Maduro foi, no caminho para o socialismo, não ter feito um corte mais profundo com os mecanismos de mercado. Além disso, notam que as empresas não são vítimas e que, tal como aconteceu no passado, estão deliberadamente a cortar a produção e a reter "stocks" de forma a sabotar um regime ao qual sempre se opuseram.

Uma parte importante das conquistas conseguidas pelo chavismo está a ser desfeita pela escalada de preços e uma economia em ruína. "Sim, muito [do progresso] foi perdido, embora não de forma permanente, se houver mudança de políticas e recuperação económica", sublinha Weisbrot. O futuro não augura nada de bom. Caracas está cada vez isolada internacionalmente. Em reacção à instalação da nova Assembleia Constituinte temem-se retaliações comerciais de países vizinhos, como México, Brasil e Colômbia, que tornarão a escassez de bens ainda mais grave. "O mais importante que poderia ser feito seria deixar a moeda flutuar e remover alguns dos controlos sobre os preços e reconstruir uma economia que funcione", acrescenta o economista. Mesmo que Maduro aceite sair de cena, a solução para a crise económica deverá envolver dor para a população. Na situação actual, os problemas são tão profundos que não se resolvem simplesmente mandando despir um casaco de fato de treino. 


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