Notícia
Será que as mulheres têm de escolher entre a política e a maternidade?
Chegar ao topo da política não é fácil para uma mulher e muito menos para uma mãe. Há muito que se discute se é possível conjugar maternidade com liderança política. Em Portugal, nunca houve uma Presidente da República mas já tivemos uma primeira-ministra.
Foi num livro que a primeira-ministra da Escócia decidiu tornar pública uma experiência pessoal dolorosa. Em "Scottish National Party Leaders", escrito por Mandy Rhodes, Nicola Sturgeon revelou que sofreu um aborto em 2011, quando tinha 40 anos. A notícia da gravidez estava prestes a ser partilhada pelo casal (Nicola é casada com Peter Murrell, um alto dirigente do SNP, o Partido Nacionalista Escocês, que ela lidera) com a família e os amigos, quando tudo aconteceu. Ao contar esta história, íntima, esperava que "isso pudesse mudar algumas das suposições e julgamentos que ainda são feitos sobre as mulheres - especialmente na política - quando não têm filhos". A sua preocupação era que as jovens que a têm como modelo não considerassem que ela tinha deliberadamente sacrificado a maternidade de forma a ter sucesso na política.
O Sunday Times pegou nesta revelação e transformou-a no centro de uma polémica no Reino Unido. A revista do jornal londrino publicou um excerto do livro onde este segredo é revelado e, a acompanhar o texto, colocou um painel com fotografias de mulheres de vários quadrantes políticos no Reino Unido e na Europa intitulado: "Childless politicians" (Políticas sem filhos). Entre elas, estavam a primeira-ministra britânica, Theresa May; a chanceler alemã, Angela Merkel; Ruth Davidson, líder do Partido Escocês Conservador; Natalie Bennett, antiga líder do Partido Verde do Reino Unido, ou Justine Greening, secretária de Estado da Educação. As reacções contra o jornal não se fizeram esperar. Desde logo, das visadas, que utilizaram as redes sociais para tecer comentários. No Twitter, Ruth Davidson escreveu de forma irónica: "Oh, gosto tanto quando sou categorizada como uma 'política sem filhos'." Natalie Bennett acusou o jornal de "viver nos anos 1950" e apontou que "20% das mulheres britânicas de 45 anos não têm filhos".
Em resposta ao Sunday Times, a campanha "Women 50:50", que defende uma representação de género igual no Parlamento escocês, "tweetou" um painel semelhante, mas só com homens políticos que também não têm filhos. A sua fundadora, Talat Yaqoob, escreveu: "Há muito menos homens políticos sem filhos do que mulheres, porque a discriminação e as dificuldades dos cuidados às crianças são questões reais na política. As mulheres ainda são vistas como as primeiras cuidadoras e, portanto, os cargos de liderança são dominados por homens. No livro, Nicola Sturgeon, que lidera o Governo escocês desde Novembro de 2014, revela as dúvidas que tem sobre a compatibilidade de ser mãe e ter responsabilidades políticas de topo. "Se o aborto não tivesse acontecido, será que eu estaria agora aqui sentada como primeira-ministra? É uma pergunta sem resposta. Eu simplesmente não sei. Já pensei nisso, mas não sei a resposta. Gostaria de pensar que sim, porque poderia mostrar que ter um filho não é uma barreira para tudo isto, mas na verdade não sei."
O jornal Sunday Times acabou por admitir que poderia ter abordado o assunto de forma mais "sensível". Mas não é a primeira vez que a imprensa britânica toca no tema "maternidade e política" com pouco tacto. No ano passado, a revista New Statesman fez capa com uma ilustração de várias mulheres com cargos políticos relevantes que não têm filhos (entre elas, estavam Nicola Sturgeon, Angela Merkel e Theresa May) a rodearem um berço que, em vez de um bebé, continha uma urna eleitoral. Mas porque é que esta questão da conciliação da maternidade com a política de topo ainda é um assunto "quente", que gera tanta controvérsia? Será que só as mulheres sem filhos podem aspirar chegar a lugares de destaque? Olhemos para o panorama dentro e fora do país.
Ainda são poucos os casos
Na Europa, a Islândia foi o primeiro país a ter uma mulher no cargo de Presidente. Em 1980, Vigdís Finnbogadóttir, uma professora catedrática de 50 anos, divorciada e com uma filha adoptiva, ocupou o lugar mais alto na política do seu país. Actualmente, Hillary Clinton disputa a corrida à Casa Branca com Donald Trump. Na Alemanha, Angela Merkel é a chanceler desde 2005. Por cá, nunca houve uma mulher na Presidência da República e só uma chegou a primeira-ministra. Maria de Lourdes Pintasilgo chefiou o V Governo Constitucional entre 1 de Agosto de 1979 e 3 de Janeiro de 1980, que ficou conhecido como "o Governo dos 100 dias". Foi o presidente Ramalho Eanes que a convidou para liderar um Executivo de gestão, depois de ter decidido dissolver a Assembleia da República. Esta engenheira de formação foi a primeira mulher pós-revolução a ter uma pasta ministerial. Teve a tutela dos Assuntos Sociais no II e III Governos Provisórios de Vasco Gonçalves.
Pintasilgo foi a segunda mulher na Europa a liderar um Governo. Em Londres, Margaret Thatcher, que ficou na História como a "Dama de Ferro", tomou posse dois meses antes e governou entre 1979 e 1990. Pintasilgo não tinha filhos. Thatcher tinha um casal de gémeos que já eram adultos quando se tornou primeira-ministra. Mas a carreira política desta licenciada em Química pela Universidade de Oxford começou muito antes, quando os filhos ainda eram pequenos.
Thatcher ganhou um lugar na Câmara dos Comuns, no Parlamento inglês, em 1959. Um ano depois, deu nas vistas com um empolgante discurso perante a Câmara, amplamente elogiado pela audiência, constituída maioritariamente por homens. A BBC fez-lhe uma entrevista em casa, no dia seguinte. Estava sentada num cadeirão, rodeada pelos gémeos, então com sete anos. O jornalista pergunta-lhe se pretende assumir funções destacadas na política. Thatcher responde: "Enquanto estes dois [referindo-se aos filhos] não forem um pouco mais velhos, eu não poderei aceitar maiores responsabilidades políticas." Só uma década mais tarde entrou para o Governo conservador liderado por Edward Heath, assumindo o lugar de ministra da Educação e Ciência. Em 1975, subiu à liderança do Partido Conservador e, quatro anos depois, assumiu o comando do executivo. Só em 2016, o Reino Unido voltou a ter outra mulher no número 10, em Downing Street. Theresa May, de 60 anos, tornou-se líder do Governo em Julho deste ano, depois de o seu antecessor, David Cameron, ter renunciado, na sequência do Brexit.
Em Portugal, já houve uma presidente da Assembleia da República. Assunção Esteves foi a segunda figura do Estado entre 2011 e 2015. Não tem filhos. Terminado o mandato, abandonou a política activa. Nos partidos políticos, Manuela Ferreira Leite foi a primeira mulher a chegar à liderança. Presidiu o PSD entre Maio de 2008 e Março de 2010. Nessa altura, os três filhos da economista já eram adultos. Actualmente, há três mulheres a liderar partidos com assento parlamentar em Portugal. A que está há mais tempo na "casa da democracia" é Heloísa Apolónia, o rosto do Partido Ecologista Os Verdes. A liderança deste partido é colegial, mas é a jurista, de 47 anos, que "dá a cara" pelos Verdes. É deputada há 21 anos e tem dois filhos adolescentes de 18 e 16 anos. Catarina Martins, de 43 anos, é coordenadora do Bloco de Esquerda e deputada desde 2009. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, já foi actriz, e tem duas filhas, de 10 e 14 anos. No pólo político oposto, está Assunção Cristas, de 42 anos. É presidente do CDS-PP e deputada desde 2009. Esta jurista de formação tem quatro filhos, entre os 3 e os 14 anos. No anterior Governo, foi ministra da Agricultura e do Mar.
A experiência na primeira pessoa
A líder do CDS-PP admite que é necessária alguma ginástica para conciliar a política com a família, mas garante que não é impossível. E, sublinha, Portugal até está na linha da frente porque "em seis partidos com representação parlamentar, três são liderados por mulheres com filhos". E qual é o segredo? "Consegue-se com partilha e com uma co-responsabilidade", diz, acrescentando que "as responsabilidades parentais tanto são das mulheres como dos homens." A família é grande, mas Assunção Cristas não sentiu que tinha de abdicar de alguma coisa por ser mãe de quatro. "Não me passaria pela cabeça deixar de ter uma família porque queria fazer um doutoramento, ou ser advogada ou ter uma actividade política. O meu principal foco está na constituição de uma família. E, portanto, como eu gostava muito de fazer as duas coisas, tive de conciliar, como é evidente."
Heloísa Apolónia, dos Verdes, tem outra perspectiva. "A partir do momento em que fui mãe, se eu estivesse num projecto [político] com reuniões até altas horas da noite ou onde as pessoas me olhassem com estranheza por levar os meus filhos para as reuniões do Conselho Nacional, eu não teria conseguido participar." E, sublinha, isso aconteceu "muitas vezes". Como as reuniões são ao fim-de-semana, explica, "já era uma rotina levarmos os filhos e eles ficavam numa sala ao lado, com uma pessoa a tomar conta deles." Foi isso que lhe permitiu "conjugar a participação nos Verdes com a maternidade".
Essa é também uma preocupação de Assunção Cristas. Quando assumiu a liderança do CDS-PP, estipulou horários para as reuniões que minimizassem o impacto na família. As da comissão política nacional, que acontecem uma vez por mês, são às 21h30, porque "há pessoas de todo o país e que trabalham, não podem vir durante o horário laboral". Essa hora permite-lhe "jantar em casa e, em seguida, ir à reunião". Já a comissão executiva "reúne sempre à hora de almoço". No fundo, a ideia é "encaixar no tempo em que os meus filhos também estão ocupados, que é durante o dia. Aquilo que é inevitável ser à noite, procuro que seja depois do jantar". E, sublinha, já existem homens na política muito envolvidos na vida dos filhos. "Eu tinha um colega de faculdade que foi secretário de Estado num Governo PS e era ele que ia todos os dias para casa dar banho às crianças", conta, a título de exemplo. Cristas defende que é preciso mostrar estes casos porque "ainda há uma sociedade muito conservadora nessa matéria" e "os homens que tomam conta das crianças e que fazem as tarefas" ainda não têm o "reconhecimento" que merecem.
Assunção Cristas é um caso único em Portugal. Engravidou quando era ministra. A notícia foi recebida pelos seus pares "com muita naturalidade", diz, e até com "um certo entusiasmo", dentro e fora do país. "Ia muito a reuniões internacionais e as pessoas achavam muito interessante", recorda. Mas, para ela, não era nada de extraordinário. "Durante o meu doutoramento, tive dois filhos e fiquei grávida do terceiro." Conta que foi ajustando o ritmo de trabalho no final da gravidez, mas trabalhou até ao fim, apesar de na última semana já estar em casa. Quando a bebé nasceu, esteve dois meses de licença. Depois foi regressando aos poucos. "Só retomei as idas a Bruxelas passados seis meses e as viagens mais longas passados oito meses. Para o Ministério, levei pouco [a bebé], mas levei-a uma vez a Roma, a uma reunião da FAO. Eu estava a amamentar. O meu marido estava de licença de paternidade e pôde acompanhar-me", revela.
Heloísa Apolónia levava o filho bebé para a Assembleia da República quando estava a amamentar. "Ele ficava na sala dos Verdes e chamavam-me quando ele começava a chorar", recorda. Para ela, o mais difícil, na conjugação entre a maternidade e o exercício de um cargo político, foi o próprio trabalho parlamentar. "A coisa tornou-se muito complicada" diz, "houve alturas em que eu tive de optar - ou os miúdos ou o Parlamento". Até porque, explica, num grupo parlamentar pequeno, "o trabalho é redobrado". Conta uma situação que aconteceu numa comissão. Heloísa Apolónia participava em toda a discussão, que se prolongou até ao final da tarde. "Eu tinha mesmo de sair para ir buscar os meus filhos à escola e pedi expressamente ao presidente da mesa se podia deixar o meu sentido de voto. Todos os grupos parlamentares aceitaram. O presidente não." Heloísa saiu "irritadíssima" da sala. Ainda hoje não sabe como conseguiu. "Fui buscar os miúdos à pressa, voltei à Assembleia, enfiei-os literalmente numa sala e, quando entrei na sala da comissão, estavam a começar as votações. Parecia uma cena de um filme", diz a rir. Só ouvia dizer: "Que sorte!" A deputada contava com a ajuda do pai das crianças, mas "nem sempre ele podia ficar com elas". Heloísa sublinha que nem todas as mulheres envolvidas na política e que são mães têm as mesmas limitações. Algumas "têm quem tome conta das crianças, outras já têm os filhos crescidos".
A Lei da paridade
Maria Helena Santos, investigadora do Centro de Investigação e Intervenção Social do ISCTE, já fez vários estudos em torno da paridade na política. Esta psicóloga social considera que "a questão da maternidade continua a ser um obstáculo para as mulheres, nomeadamente para aquelas que ambicionam chegar a cargos políticos de topo e, em particular, para as mulheres de baixo estatuto socioeconómico." Este é ainda um mundo de homens e há vários factores que contribuem para isso. Por um lado, "as mulheres continuam a estar mais ligadas à esfera privada do que os homens" e, por isso, acabam por estar "mais envolvidas com a questão da 'conciliação' entre a esfera privada e a actividade política do que os homens" e, acrescenta a investigadora, "esta 'conciliação' nem sempre é fácil para elas." Maria Helena Santos dá um exemplo: "A ausência de horários que existe na política requer uma disponibilidade que se coaduna mal com as funções da maior parte das mulheres, ao nível da vida privada (que continuam a carregar a 'dupla jornada de trabalho', pois continua a caber-lhes toda a gestão da casa e o cuidado da família. Não só das crianças, mas, por vezes, também do pai, da mãe, etc." Os números tornam esta questão evidente.
Portugal está no 29.º lugar do "ranking" mundial da Inter-Parliamentary Union no que diz respeito à representação das mulheres no Parlamento. No hemiciclo português, 34,8% dos lugares são ocupados por mulheres. A lista de 193 países é encabeçada pelo Ruanda, onde mais de metade dos deputados (63,8%) são do sexo feminino. Nos dez primeiros lugares, há apenas dois países europeus - a Suécia está em quinto lugar e em 10.º a Finlândia. O actual Governo tem a maior representação feminina de sempre. Ministras e secretárias de Estado pesam cerca de 33% no Executivo (ao todo, são quatro ministras e 14 secretárias de Estado).
Em 2006, o Parlamento português aprovou a Lei da Paridade, que previa a aplicação de quotas de 33% para as mulheres nas listas eleitorais. O projecto de lei "nasceu" no XIII Governo Constitucional, liderado pelo socialista António Guterres, que não conseguiu aprovação no Parlamento em finais dos anos 90. É irónico que, neste momento, enquanto futuro secretário-geral da ONU, Guterres tenha também em mãos a questão da paridade na organização. O diploma provocou uma discussão acesa no meio político, com argumentos contra e a favor apresentados tanto por homens como por mulheres. Uma das vozes contra foi a de Manuela Ferreira Leite, que chegou a afirmar: "Por mim, nunca aceitaria nenhum lugar que admitisse que a minha escolha alguma vez se pudesse basear no facto de ser mulher ou para ajudar a preencher um mero critério legal." A lei foi aplicada, pela primeira vez, em 2009, ano em que os portugueses foram chamados três vezes às urnas. Primeiro, nas eleições europeias (7 de Junho), depois nas legislativas (27 Setembro) e, mais tarde, nas autárquicas (11 de Outubro). Olhando para o hemiciclo, já é evidente que as mulheres começam a ganhar terreno. Mas, para chegar ao topo da política, ainda há um caminho a percorrer, com ou sem filhos.
O Sunday Times pegou nesta revelação e transformou-a no centro de uma polémica no Reino Unido. A revista do jornal londrino publicou um excerto do livro onde este segredo é revelado e, a acompanhar o texto, colocou um painel com fotografias de mulheres de vários quadrantes políticos no Reino Unido e na Europa intitulado: "Childless politicians" (Políticas sem filhos). Entre elas, estavam a primeira-ministra britânica, Theresa May; a chanceler alemã, Angela Merkel; Ruth Davidson, líder do Partido Escocês Conservador; Natalie Bennett, antiga líder do Partido Verde do Reino Unido, ou Justine Greening, secretária de Estado da Educação. As reacções contra o jornal não se fizeram esperar. Desde logo, das visadas, que utilizaram as redes sociais para tecer comentários. No Twitter, Ruth Davidson escreveu de forma irónica: "Oh, gosto tanto quando sou categorizada como uma 'política sem filhos'." Natalie Bennett acusou o jornal de "viver nos anos 1950" e apontou que "20% das mulheres britânicas de 45 anos não têm filhos".
O jornal Sunday Times acabou por admitir que poderia ter abordado o assunto de forma mais "sensível". Mas não é a primeira vez que a imprensa britânica toca no tema "maternidade e política" com pouco tacto. No ano passado, a revista New Statesman fez capa com uma ilustração de várias mulheres com cargos políticos relevantes que não têm filhos (entre elas, estavam Nicola Sturgeon, Angela Merkel e Theresa May) a rodearem um berço que, em vez de um bebé, continha uma urna eleitoral. Mas porque é que esta questão da conciliação da maternidade com a política de topo ainda é um assunto "quente", que gera tanta controvérsia? Será que só as mulheres sem filhos podem aspirar chegar a lugares de destaque? Olhemos para o panorama dentro e fora do país.
Ainda são poucos os casos
Na Europa, a Islândia foi o primeiro país a ter uma mulher no cargo de Presidente. Em 1980, Vigdís Finnbogadóttir, uma professora catedrática de 50 anos, divorciada e com uma filha adoptiva, ocupou o lugar mais alto na política do seu país. Actualmente, Hillary Clinton disputa a corrida à Casa Branca com Donald Trump. Na Alemanha, Angela Merkel é a chanceler desde 2005. Por cá, nunca houve uma mulher na Presidência da República e só uma chegou a primeira-ministra. Maria de Lourdes Pintasilgo chefiou o V Governo Constitucional entre 1 de Agosto de 1979 e 3 de Janeiro de 1980, que ficou conhecido como "o Governo dos 100 dias". Foi o presidente Ramalho Eanes que a convidou para liderar um Executivo de gestão, depois de ter decidido dissolver a Assembleia da República. Esta engenheira de formação foi a primeira mulher pós-revolução a ter uma pasta ministerial. Teve a tutela dos Assuntos Sociais no II e III Governos Provisórios de Vasco Gonçalves.
Pintasilgo foi a segunda mulher na Europa a liderar um Governo. Em Londres, Margaret Thatcher, que ficou na História como a "Dama de Ferro", tomou posse dois meses antes e governou entre 1979 e 1990. Pintasilgo não tinha filhos. Thatcher tinha um casal de gémeos que já eram adultos quando se tornou primeira-ministra. Mas a carreira política desta licenciada em Química pela Universidade de Oxford começou muito antes, quando os filhos ainda eram pequenos.
Thatcher ganhou um lugar na Câmara dos Comuns, no Parlamento inglês, em 1959. Um ano depois, deu nas vistas com um empolgante discurso perante a Câmara, amplamente elogiado pela audiência, constituída maioritariamente por homens. A BBC fez-lhe uma entrevista em casa, no dia seguinte. Estava sentada num cadeirão, rodeada pelos gémeos, então com sete anos. O jornalista pergunta-lhe se pretende assumir funções destacadas na política. Thatcher responde: "Enquanto estes dois [referindo-se aos filhos] não forem um pouco mais velhos, eu não poderei aceitar maiores responsabilidades políticas." Só uma década mais tarde entrou para o Governo conservador liderado por Edward Heath, assumindo o lugar de ministra da Educação e Ciência. Em 1975, subiu à liderança do Partido Conservador e, quatro anos depois, assumiu o comando do executivo. Só em 2016, o Reino Unido voltou a ter outra mulher no número 10, em Downing Street. Theresa May, de 60 anos, tornou-se líder do Governo em Julho deste ano, depois de o seu antecessor, David Cameron, ter renunciado, na sequência do Brexit.
Em Portugal, já houve uma presidente da Assembleia da República. Assunção Esteves foi a segunda figura do Estado entre 2011 e 2015. Não tem filhos. Terminado o mandato, abandonou a política activa. Nos partidos políticos, Manuela Ferreira Leite foi a primeira mulher a chegar à liderança. Presidiu o PSD entre Maio de 2008 e Março de 2010. Nessa altura, os três filhos da economista já eram adultos. Actualmente, há três mulheres a liderar partidos com assento parlamentar em Portugal. A que está há mais tempo na "casa da democracia" é Heloísa Apolónia, o rosto do Partido Ecologista Os Verdes. A liderança deste partido é colegial, mas é a jurista, de 47 anos, que "dá a cara" pelos Verdes. É deputada há 21 anos e tem dois filhos adolescentes de 18 e 16 anos. Catarina Martins, de 43 anos, é coordenadora do Bloco de Esquerda e deputada desde 2009. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, já foi actriz, e tem duas filhas, de 10 e 14 anos. No pólo político oposto, está Assunção Cristas, de 42 anos. É presidente do CDS-PP e deputada desde 2009. Esta jurista de formação tem quatro filhos, entre os 3 e os 14 anos. No anterior Governo, foi ministra da Agricultura e do Mar.
A experiência na primeira pessoa
A líder do CDS-PP admite que é necessária alguma ginástica para conciliar a política com a família, mas garante que não é impossível. E, sublinha, Portugal até está na linha da frente porque "em seis partidos com representação parlamentar, três são liderados por mulheres com filhos". E qual é o segredo? "Consegue-se com partilha e com uma co-responsabilidade", diz, acrescentando que "as responsabilidades parentais tanto são das mulheres como dos homens." A família é grande, mas Assunção Cristas não sentiu que tinha de abdicar de alguma coisa por ser mãe de quatro. "Não me passaria pela cabeça deixar de ter uma família porque queria fazer um doutoramento, ou ser advogada ou ter uma actividade política. O meu principal foco está na constituição de uma família. E, portanto, como eu gostava muito de fazer as duas coisas, tive de conciliar, como é evidente."
Heloísa Apolónia, dos Verdes, tem outra perspectiva. "A partir do momento em que fui mãe, se eu estivesse num projecto [político] com reuniões até altas horas da noite ou onde as pessoas me olhassem com estranheza por levar os meus filhos para as reuniões do Conselho Nacional, eu não teria conseguido participar." E, sublinha, isso aconteceu "muitas vezes". Como as reuniões são ao fim-de-semana, explica, "já era uma rotina levarmos os filhos e eles ficavam numa sala ao lado, com uma pessoa a tomar conta deles." Foi isso que lhe permitiu "conjugar a participação nos Verdes com a maternidade".
Essa é também uma preocupação de Assunção Cristas. Quando assumiu a liderança do CDS-PP, estipulou horários para as reuniões que minimizassem o impacto na família. As da comissão política nacional, que acontecem uma vez por mês, são às 21h30, porque "há pessoas de todo o país e que trabalham, não podem vir durante o horário laboral". Essa hora permite-lhe "jantar em casa e, em seguida, ir à reunião". Já a comissão executiva "reúne sempre à hora de almoço". No fundo, a ideia é "encaixar no tempo em que os meus filhos também estão ocupados, que é durante o dia. Aquilo que é inevitável ser à noite, procuro que seja depois do jantar". E, sublinha, já existem homens na política muito envolvidos na vida dos filhos. "Eu tinha um colega de faculdade que foi secretário de Estado num Governo PS e era ele que ia todos os dias para casa dar banho às crianças", conta, a título de exemplo. Cristas defende que é preciso mostrar estes casos porque "ainda há uma sociedade muito conservadora nessa matéria" e "os homens que tomam conta das crianças e que fazem as tarefas" ainda não têm o "reconhecimento" que merecem.
Assunção Cristas é um caso único em Portugal. Engravidou quando era ministra. A notícia foi recebida pelos seus pares "com muita naturalidade", diz, e até com "um certo entusiasmo", dentro e fora do país. "Ia muito a reuniões internacionais e as pessoas achavam muito interessante", recorda. Mas, para ela, não era nada de extraordinário. "Durante o meu doutoramento, tive dois filhos e fiquei grávida do terceiro." Conta que foi ajustando o ritmo de trabalho no final da gravidez, mas trabalhou até ao fim, apesar de na última semana já estar em casa. Quando a bebé nasceu, esteve dois meses de licença. Depois foi regressando aos poucos. "Só retomei as idas a Bruxelas passados seis meses e as viagens mais longas passados oito meses. Para o Ministério, levei pouco [a bebé], mas levei-a uma vez a Roma, a uma reunião da FAO. Eu estava a amamentar. O meu marido estava de licença de paternidade e pôde acompanhar-me", revela.
Heloísa Apolónia levava o filho bebé para a Assembleia da República quando estava a amamentar. "Ele ficava na sala dos Verdes e chamavam-me quando ele começava a chorar", recorda. Para ela, o mais difícil, na conjugação entre a maternidade e o exercício de um cargo político, foi o próprio trabalho parlamentar. "A coisa tornou-se muito complicada" diz, "houve alturas em que eu tive de optar - ou os miúdos ou o Parlamento". Até porque, explica, num grupo parlamentar pequeno, "o trabalho é redobrado". Conta uma situação que aconteceu numa comissão. Heloísa Apolónia participava em toda a discussão, que se prolongou até ao final da tarde. "Eu tinha mesmo de sair para ir buscar os meus filhos à escola e pedi expressamente ao presidente da mesa se podia deixar o meu sentido de voto. Todos os grupos parlamentares aceitaram. O presidente não." Heloísa saiu "irritadíssima" da sala. Ainda hoje não sabe como conseguiu. "Fui buscar os miúdos à pressa, voltei à Assembleia, enfiei-os literalmente numa sala e, quando entrei na sala da comissão, estavam a começar as votações. Parecia uma cena de um filme", diz a rir. Só ouvia dizer: "Que sorte!" A deputada contava com a ajuda do pai das crianças, mas "nem sempre ele podia ficar com elas". Heloísa sublinha que nem todas as mulheres envolvidas na política e que são mães têm as mesmas limitações. Algumas "têm quem tome conta das crianças, outras já têm os filhos crescidos".
A Lei da paridade
Maria Helena Santos, investigadora do Centro de Investigação e Intervenção Social do ISCTE, já fez vários estudos em torno da paridade na política. Esta psicóloga social considera que "a questão da maternidade continua a ser um obstáculo para as mulheres, nomeadamente para aquelas que ambicionam chegar a cargos políticos de topo e, em particular, para as mulheres de baixo estatuto socioeconómico." Este é ainda um mundo de homens e há vários factores que contribuem para isso. Por um lado, "as mulheres continuam a estar mais ligadas à esfera privada do que os homens" e, por isso, acabam por estar "mais envolvidas com a questão da 'conciliação' entre a esfera privada e a actividade política do que os homens" e, acrescenta a investigadora, "esta 'conciliação' nem sempre é fácil para elas." Maria Helena Santos dá um exemplo: "A ausência de horários que existe na política requer uma disponibilidade que se coaduna mal com as funções da maior parte das mulheres, ao nível da vida privada (que continuam a carregar a 'dupla jornada de trabalho', pois continua a caber-lhes toda a gestão da casa e o cuidado da família. Não só das crianças, mas, por vezes, também do pai, da mãe, etc." Os números tornam esta questão evidente.
Portugal está no 29.º lugar do "ranking" mundial da Inter-Parliamentary Union no que diz respeito à representação das mulheres no Parlamento. No hemiciclo português, 34,8% dos lugares são ocupados por mulheres. A lista de 193 países é encabeçada pelo Ruanda, onde mais de metade dos deputados (63,8%) são do sexo feminino. Nos dez primeiros lugares, há apenas dois países europeus - a Suécia está em quinto lugar e em 10.º a Finlândia. O actual Governo tem a maior representação feminina de sempre. Ministras e secretárias de Estado pesam cerca de 33% no Executivo (ao todo, são quatro ministras e 14 secretárias de Estado).
Em 2006, o Parlamento português aprovou a Lei da Paridade, que previa a aplicação de quotas de 33% para as mulheres nas listas eleitorais. O projecto de lei "nasceu" no XIII Governo Constitucional, liderado pelo socialista António Guterres, que não conseguiu aprovação no Parlamento em finais dos anos 90. É irónico que, neste momento, enquanto futuro secretário-geral da ONU, Guterres tenha também em mãos a questão da paridade na organização. O diploma provocou uma discussão acesa no meio político, com argumentos contra e a favor apresentados tanto por homens como por mulheres. Uma das vozes contra foi a de Manuela Ferreira Leite, que chegou a afirmar: "Por mim, nunca aceitaria nenhum lugar que admitisse que a minha escolha alguma vez se pudesse basear no facto de ser mulher ou para ajudar a preencher um mero critério legal." A lei foi aplicada, pela primeira vez, em 2009, ano em que os portugueses foram chamados três vezes às urnas. Primeiro, nas eleições europeias (7 de Junho), depois nas legislativas (27 Setembro) e, mais tarde, nas autárquicas (11 de Outubro). Olhando para o hemiciclo, já é evidente que as mulheres começam a ganhar terreno. Mas, para chegar ao topo da política, ainda há um caminho a percorrer, com ou sem filhos.