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Pedro Mestre: Ser conhecedor das vivências dos homens é a minha maior riqueza

Pedro Mestre, o homem do cante alentejano, aprendeu o ofício de tocador de viola campaniça com Chico Bailão e Manuel Bento. Em 2015, lançou o seu primeiro álbum em nome próprio, o “Campaniça do Despique”, e o seu próximo disco deverá chamar-se “Mercado dos Amores”.

Bruno Simão
05 de Maio de 2017 às 14:00
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A viola campaniça está aconchegada ao corpo como se fosse uma extensão dos seus braços. Pedro Mestre aprendeu o ofício de tocador com Chico Bailão e Manuel Bento, dois homens que animavam a taberna do tio Dimas numa aldeia que foi engolida pela Barragem do Monte da Rocha. Nascido na Aldeia da Sete, em Castro Verde, o menino que gostava de ouvir os mais velhos andava sempre com um gravador a registar conversas e sons. Aprendeu a cantar, a tocar e a construir a sua viola campaniça, deu continuidade à arte dos antigos. Desenvolveu o projecto "Cante nas Escolas", formou jovens na Escola/Oficina de Violas Campaniças, fez e continua a fazer recolha etnográfica da música tradicional alentejana. Em 2015, lançou o primeiro álbum em nome próprio, "Campaniça do Despique". Um dos concertos de apresentação, no CCB, foi agora lançado em DVD. O próximo disco deverá chamar-se "Mercado dos Amores". Pedro Mestre vai estar hoje na Fnac do Chiado, às 18h30. 


Preocupo-me mais com as violas do que comigo, elas são muito delicadas, não podem estar ao calor, não podem ficar ao frio, não podem cair, são como as crianças, são as minhas crianças. Quando entram na vida das pessoas, alteram-na. A música tem a capacidade de nos transformar e eu, desde muito novo, percebi que era apaixonado por música da tradição, algo pouco usual para uma criança, mas aconteceu comigo e, a partir daí, tornei-me outra pessoa.

Comecei a ter aulas de viola campaniça aos 11 anos, mas antes disso já ouvia na rádio os dois únicos homens que tocavam aquele instrumento, o Francisco António, conhecido por Chico Bailão, e o sobrinho dele, que era mais velho do que o tio, o Manuel Bento. Percebi que gostava tanto daqueles sons e daqueles timbres que queria tocá-los. Quis saber se aqueles homens estavam disponíveis para me ensinar, e estavam. Passei a ser neto deles, eles passaram a ser mais dois avôs que eu ganhei. Aqueles dois homens adoptaram-me enquanto discípulo de uma arte que consideravam estar quase extinta.

O Chico Bailão e o Manuel Bento eram naturais de uma aldeia que está submersa pela Barragem do Monte da Rocha, a Aldeia Nova de Ourique. Era uma aldeia pequena com muita vida, boa disposição e sobretudo amizade, e onde tudo era pretexto para cantar, dançar e namorar. Com a construção da barragem, nos anos 60, a população dividiu-se pelas localidades vizinhas e era sempre com grande mágoa e com grande saudade que falavam da aldeia submersa. Parece quase uma história surreal, uma coisa de fantasia, mas não é.

Sempre que tocávamos viola, o senhor Manuel Bento falava da aldeia, ele sonhava todos os dias com ela. Era nessa mesma aldeia que, nos anos 40, 50, existia o maior número de tocadores de viola campaniça. O avô dele tocava, o pai tocava, o tio tocava, o outro tio tocava, e tocavam, precisamente, para se divertirem, para confraternizarem, para se aproximarem das namoradas, para dançar. Era uma realidade muito interessante e que atraía gente das aldeias vizinhas.

O Manuel Bento era filho de um seareiro que trabalhava à jorna para outros, mas que também tinha uma taberna, era a taberna do tio Dimas - Dimas era o pai do senhor Manuel. Era lá que se reuniam os homens que cantavam de improviso, acompanhados à viola campaniça, cantavam o chamado despique, uma das modalidades de improviso do Alentejo.

Ouvi falar tanto da Aldeia Nova, ouvi tantas histórias, que até me dá a ideia de que vivi lá. Uma vez, o nível da água desceu muito e eu fui com o Manuel Bento tocar naquele que era o espaço da antiga taberna. Foi muito duro e, ao mesmo tempo, foi uma alegria enorme. Ele tinha uma forte ligação à viola, mas tinha sobretudo uma ligação muito forte com a água, a água inundou-lhe a aldeia e, anos mais tarde, a água invadiu-lhe a casa. Ele vivia na aldeia da Funcheira, para onde se tinha mudado depois de a sua terra ter ficado submersa. Então, ele dizia muitas vezes: a água tentou tirar-me a viola, mas Deus é grande e não quis - ele tinha as violas dentro de uns estojos em cima do roupeiro, o roupeiro partiu-se todo, uma das violas foi levada pela água, outra não. Esta é a história que poderia ter significado o fim da viola campaniça.

O senhor Manuel Bento tinha ficado viúvo, havia poucos meses, da dona Perpétua, que era quem cantava com os homens, e eu cresci a ouvi-los a cantar e a tocar na rádio, foram eles que me ensinaram a tocar esta viola e, mais tarde, fiz parte do grupo onde tocavam, o Grupo Viola Campaniça. Depois entraram mais cantadeiras, a Mariana Maria, a Maria Inácia, a Alice Maria, entrou outro tocador, que também aprendeu a construir o instrumento, e foi assim que se foi dando continuidade a uma arte que queríamos salvaguardar.

Tínhamos uma outra preocupação: como poderíamos ensinar sem instrumentos? Os que existiam já eram antigos e já não havia na região quem construísse as violas campaniças. Entretanto, o senhor Amílcar Silva começou a construí-las e foi com ele que eu desenvolvi essa arte. As violas são muito simples, mas é muito importante saber o tipo de madeira a utilizar - nogueira, casquinha ou pinho. Depois, tive um espaço, a Escola/Oficina de Violas Campaniças, onde ensinava a tocar, e vai surgir em breve um centro de estudos da viola campaniça, em Castro Verde, para que se possa transmitir a vivência e a experiência do instrumento.

Com o projecto "Cante nas Escolas", que começou em 2006, também conseguimos sensibilizar várias crianças para este tipo de música do Alentejo. Em 11 anos, passaram por mim milhares de crianças e ainda hoje continuo a dar aulas no 1.º ciclo. Sinto que os passos que dei acabaram por despertar, nas crianças e adolescentes, a noção de que a sua região é bela e que podem orgulhar-se dela. De alguma forma, ao envolverem-se com uma arte desta natureza, acabam por reconhecer as suas próprias capacidades. Senti sempre que a juventude do interior alentejano tinha uma baixa auto-estima, não sei bem porquê, talvez por a realidade local estar distante daquela que os jovens sonhavam ter, talvez porque aquilo que mais rapidamente chegava lá era o que havia de menos bom, as drogas e o álcool. Aos poucos, a viola campaniça e o cante acabaram por motivar os mais jovens. Tenho o exemplo de uma criança que, até ao 3.º ano, não sabia ler nem escrever. Com o projecto do cante alentejano, percebeu que tinha uma voz tão bonita que p
recisava mesmo de aprender a ler e a escrever para continuar a aprender.

Os jovens encontram no cante e na viola campaniça uma forma de se divertirem e, por todo o Baixo Alentejo, estão a retomar este tipo de encontros e a revitalizar o petisco. O convívio nas tabernas está a ressurgir, embora nalguns casos as tabernas sejam chamadas de casas de cante e correm o risco de perder o seu lado mais genuíno. Receio até que se perca algum "bairrismo" do cante alentejano, receio que se percam as "nuances" e os sotaques de cada localidade.

Nem sequer me lembro de começar a cantar. A minha avó mandava-me à taberna para chamar o meu avô, o meu pai ou o meu tio, eu chegava e ficava ali a ver aqueles homens a cantar em volta de uma meia dúzia de azeitonas e de um copo de vinho, de uma maçã, de um naco de queijo e de uma borda de pão. Era sempre assim ao fim da tarde. No Alentejo, ainda existe a tradição de tomar vinho várias vezes ao dia, e tudo é motivo para cantar, basta juntarem-se três ou quatro homens. Nas aldeias pequenas, quando meia dúzia de homens cantam uma moda, toda a gente fica a saber, ouve-se, é um canto de porta aberto, é um canto colectivo.

Sou natural da Aldeia da Sete e continuo a morar na mesma aldeia, faço questão de continuar a morar lá, faço questão de ir à taberna, faço questão de conviver com os mais velhos. Sempre gostei de estar com os mais velhos, desde miúdo. Os meus colegas diziam: lá vais tu outra vez com os velhos de chapéu na cabeça, é uma vergonha, deixa isso, vamos à discoteca, temos é de usar a calça rasgada. Nunca liguei a isso, dava-me um prazer enorme ouvir os mais velhos e as suas histórias. Essa é a minha maior riqueza, o ser conhecedor da arte e das vivências dos homens. Andava sempre de gravador na mão a gravar conversas e a fazer recolha etnográfica. Lancei vários discos de corais e de viola campaniça, só depois é que editei um disco em nome próprio, o "Campaniça do Despique".

É uma conquista diária conseguir estar a tempo inteiro neste tipo de actividade. Para mim, é sustentável porque sou remunerado para leccionar nas escolas, para tocar e fazer concertos, mas não é fácil. Não é um negócio muito rentável. Depois de o cante alentejano ser considerado Património Cultural Imaterial da Humanidade, passou a existir muita concorrência, alguma desleal, e hoje regateiam-se concertos como se estivéssemos na feira a leiloar um par de meias. Consegue-se sobreviver, mas não se ganha dinheiro com música da tradição. 


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