Notícia
Paris>Sarah>Lisboa: Monstro sagrado
De que matéria é feita uma diva? Num único nome, a extravagância e loucura de outros tempos. Debaixo dos vestidos que se sucedem há uma mulher, uma dama que recusa o inevitável declínio.
Paris > Sarah > Lisboa
O novo trabalho de Miguel Loureiro leva, até 11 de Fevereiro, o espectador num percurso pelo São Luiz.
E, em cada paragem, a descobrir a actriz francesa Sarah Bernhardt.
Foi juntando livros em Paris enquanto esteve a "vasculhar as coisas" de Sarah Bernhardt. Um, dois… sete quilos. "Comprei-os todos lá e depois fiz um caixote e mandei pelos correios franceses. Paguei um balúrdio, não sabia que se pagava tanto". Tudo em busca do ideal da actriz romântica do século XIX.
Miguel Loureiro, encenador, não esconde que foi arrebatado pela figura que o desafiaram a descobrir. "Não há como não se apaixonar. Gosto de trabalhar biografias, destas figuras excêntricas do teatro". Já o tinha feito com a "rapper" Nicki Minaj ou com a irmã de Fidel Castro, Juanita.
Mulheres, não esconde a preferência. "São mais interessantes em termos de pictoresco. Ao homem é pedida uma centralidade. Há discursos periféricos que sinto mais curiosidade em pesquisar: as mulheres têm mais propensão à extravagância e loucura".
Encontrou o exemplo perfeito em Sarah Bernhardt, actriz francesa que viveu entre 1844 e 1923. É ela que retrata em "Paris > Sarah > Lisboa", cuja segunda etapa chega agora ao São Luiz Teatro Municipal com interpretação de Beatriz Batarda.
A primeira, como desvenda o próprio título, teve lugar na capital francesa. Não por acaso no Théâtre de la Ville, a que Sarah Bernhardt tinha dado nome antes das invasões nazis. Nessa sala, que comprou e dinamizou, a actriz haveria de viver os maiores aplausos e desgostos.
Ainda lá estavam vestígios, onde se pensa ter sido o seu camarim. Num espaço marcado pelo prateado e dourado, Miguel Loureiro diz sentir-se a aura de uma artista que "até os franceses não conhecem muito bem". Banheiro, toucador, tapetes, armários ou cartazes. Tudo "tem aquela patine da Belle Époque francesa".
Com a ajuda de Astrid Bas, Miguel Loureiro recuperou aí uma memória dos palcos. Usar o singular é simplificar a carga de pormenores onde o encenador se perde quando tem de contar o que este exercício de arqueologia teatral lhe trouxe. Sempre para mostrar como uma diva não pode deixar de ser paradoxal.
Cocteau deu a Sarah Bernhardt o título de "monstro sagrado". "Era especialista em cenas de agonia e morte longa. Quanto mais agonizante, mais o público vibrava". Dizem os registos que chegava a dormir dentro de caixões e a desenterrar esqueletos para conversar no camarim. Tudo para melhor representar as personagens trágicas.
"Progressista nos modos e costumes", Sarah Bernhardt "vivia como queria" e recusou-se a ser bandeira de qualquer causa que não fosse ela própria. Tanto que "rejeitou um certo modernismo teatral" que se vinha afirmando. "Preferiu o verso alexandrino. Ibsen e Strindberg não eram do seu agrado. A voz pujante manteve-se sempre. A figura e a agilidade é que caíram, o reportório envelheceu".
Com essas escolhas, vieram os julgamentos ao talento e à figura bem como as vozes que pressionam rumo a um declínio inevitável. É também essa "degradação de imagem" que Miguel Loureiro procura dar ao longo do percurso no São Luiz, sala onde Sarah Bernhardt chegou a actuar em Lisboa. Ao todo, foram cinco as visitas a Portugal.
"Sarah Bernhardt preferiu ficar onde imperou. Acontece a todos: receita que ganha quer manter-se. É um bocado a tragédia dos actores, que lidam muito com a imagem. Tentam mantê-la o resto da carreira. É uma escravidão ao aspecto físico".
Daí a sucessão de vestidos por espectáculo, a dramaturgia ignorada, a escolha dos actores mais fracos de Paris para a acompanharem, as digressões para os "confins do mundo" quando se tornou difícil arranjar trabalho na Cidade das Luzes, a insistência na cultura de luxo. "O que interessava era o culto da figura".
Em Sarah Bernhardt há um exemplo de resistência quando outros paradigmas da imagem se impunham.
O novo trabalho de Miguel Loureiro leva, até 11 de Fevereiro, o espectador num percurso pelo São Luiz.
E, em cada paragem, a descobrir a actriz francesa Sarah Bernhardt.
Foi juntando livros em Paris enquanto esteve a "vasculhar as coisas" de Sarah Bernhardt. Um, dois… sete quilos. "Comprei-os todos lá e depois fiz um caixote e mandei pelos correios franceses. Paguei um balúrdio, não sabia que se pagava tanto". Tudo em busca do ideal da actriz romântica do século XIX.
Mulheres, não esconde a preferência. "São mais interessantes em termos de pictoresco. Ao homem é pedida uma centralidade. Há discursos periféricos que sinto mais curiosidade em pesquisar: as mulheres têm mais propensão à extravagância e loucura".
Encontrou o exemplo perfeito em Sarah Bernhardt, actriz francesa que viveu entre 1844 e 1923. É ela que retrata em "Paris > Sarah > Lisboa", cuja segunda etapa chega agora ao São Luiz Teatro Municipal com interpretação de Beatriz Batarda.
A primeira, como desvenda o próprio título, teve lugar na capital francesa. Não por acaso no Théâtre de la Ville, a que Sarah Bernhardt tinha dado nome antes das invasões nazis. Nessa sala, que comprou e dinamizou, a actriz haveria de viver os maiores aplausos e desgostos.
Ainda lá estavam vestígios, onde se pensa ter sido o seu camarim. Num espaço marcado pelo prateado e dourado, Miguel Loureiro diz sentir-se a aura de uma artista que "até os franceses não conhecem muito bem". Banheiro, toucador, tapetes, armários ou cartazes. Tudo "tem aquela patine da Belle Époque francesa".
Com a ajuda de Astrid Bas, Miguel Loureiro recuperou aí uma memória dos palcos. Usar o singular é simplificar a carga de pormenores onde o encenador se perde quando tem de contar o que este exercício de arqueologia teatral lhe trouxe. Sempre para mostrar como uma diva não pode deixar de ser paradoxal.
Cocteau deu a Sarah Bernhardt o título de "monstro sagrado". "Era especialista em cenas de agonia e morte longa. Quanto mais agonizante, mais o público vibrava". Dizem os registos que chegava a dormir dentro de caixões e a desenterrar esqueletos para conversar no camarim. Tudo para melhor representar as personagens trágicas.
"Progressista nos modos e costumes", Sarah Bernhardt "vivia como queria" e recusou-se a ser bandeira de qualquer causa que não fosse ela própria. Tanto que "rejeitou um certo modernismo teatral" que se vinha afirmando. "Preferiu o verso alexandrino. Ibsen e Strindberg não eram do seu agrado. A voz pujante manteve-se sempre. A figura e a agilidade é que caíram, o reportório envelheceu".
Com essas escolhas, vieram os julgamentos ao talento e à figura bem como as vozes que pressionam rumo a um declínio inevitável. É também essa "degradação de imagem" que Miguel Loureiro procura dar ao longo do percurso no São Luiz, sala onde Sarah Bernhardt chegou a actuar em Lisboa. Ao todo, foram cinco as visitas a Portugal.
"Sarah Bernhardt preferiu ficar onde imperou. Acontece a todos: receita que ganha quer manter-se. É um bocado a tragédia dos actores, que lidam muito com a imagem. Tentam mantê-la o resto da carreira. É uma escravidão ao aspecto físico".
Daí a sucessão de vestidos por espectáculo, a dramaturgia ignorada, a escolha dos actores mais fracos de Paris para a acompanharem, as digressões para os "confins do mundo" quando se tornou difícil arranjar trabalho na Cidade das Luzes, a insistência na cultura de luxo. "O que interessava era o culto da figura".
Em Sarah Bernhardt há um exemplo de resistência quando outros paradigmas da imagem se impunham.