Notícia
Luzes na cidade nocturna
A revolução industrial e a revolução francesa impõem a idade das luzes como aquela que apaga a das trevas. A Europa mudava. Lisboa e Portugal só começaram a iluminar a noite mais tarde. E isso era apenas o reflexo de algum atraso político, económico e social.
Há muitos anos, o escritor José Rodrigues Miguéis iluminou a actividade do intendente Pina Manique: "Quem foi, o que fez Pina Manique? O intendente Pina Manique acendeu a luz das ruas e apagou a dos espíritos". Conhecido pela forma autoritária como impôs a lei, Pina Manique tinha também a responsabilidade pela iluminação da capital portuguesa. Porque esta, de noite, era um paraíso para todo o tipo de assaltos, uns mais sangrentos do que os outros.
Pina Manique, para combater a criminalidade, julgava necessário iluminar Lisboa à noite. Mas pela frente tinha muitas resistências. Uma delas era o custo elevado do azeite utilizado como combustível nos candeeiros. Também por isso, Lisboa e Portugal só começaram a iluminar a noite mais tarde do que muitas cidades europeias. No fundo, tal era apenas o reflexo de algum atraso político, económico e social do país.
A partir de finais do século XVIII, a Europa assiste a uma série de mutações profundas, algumas delas radicais, desde o fim do absolutismo monárquico, e a chegada do liberalismo, à entrada em força da tecnologia e da ciência. As revoluções industrial e francesa impõem a idade das Luzes que apaga a das trevas. A luz que ilumina as noites é um corolário destas ideias. O homem chega a uma época em que é capaz de, com a ciência e a tecnologia à sua disposição, transformar a noite em dia.
As noites do século XIX
A Europa mudou. Esse é o relato que encontramos num livro fundamental: "Nights in the Big City", de Joachim Schlör, professor da Universidade de Southampton, agora publicado em inglês (o original, alemão, é de 1991). O autor parte de um princípio: as noites das metrópoles do século XIX provocavam fascínio e medo. Por um lado, eram motivo de desejo e tentação; por outro, eram sinónimo de intimidação e terror. O prazer vivia de mãos dadas com o crime.
O autor centra-se em três cidades europeias (Paris, Berlim e Londres) e no período que decorre entre 1840 e 1930, delimitado pela introdução da iluminação a gás e, mais tarde, eléctrica nas ruas. A luz era, então, nas palavras de um londrino, tão boa como um polícia. E estes também só começam a emergir de forma mais efectiva neste período. A luz nocturna e a segurança são quase sinónimos nas grandes cidades urbanas, avivadas pelo comércio e pela revolução industrial.
A cidade do século XIX é o principal palco da modernização, onde os desafios colocados pela industrialização e urbanização eram os mais prementes. Desde logo porque, nesse período, assiste-se a uma mudança profunda da natureza da actividade nocturna. Antes da introdução da luz nas noites das metrópoles, a maioria da população urbana retirava-se para dentro das suas casas quando o dia caía. A luz trouxe para a praça pública outras questões como a segurança, a moralidade e o prazer. Tal como a qualidade das casas que os cidadãos habitavam.
O crescente número de pessoas que viviam nas ruas, porque não tinham casa, fruto de uma proletarização miserável, que Charles Dickens tão bem descreveu, cruzava-se com as hordas de gentes que começaram a ocupar os locais de prazer da noite, de restaurantes a teatros e locais de dança, como as Folies-Bergère, o Chat Noir e o Moulin Rouge, em Paris, ou o Hasenheide em Berlim. Como escrevia, em 1843, F. Gustav Kühne, "a opulência da riqueza e a miséria" das classes mais baixas confronta-se todas as noites de forma cada vez mais visível e afiada. A sexualidade conquistou também as ruas nocturnas e não apenas na forma de prostituição. Isso fez com que outros sectores sociais ficassem mais atentos às noites, como os padres e bardos contra o "vício" e, claro, advogados. A noite metropolitana tornou-se um palco onde lutavam o progresso e o liberalismo e os que associavam essa "liberdade" à decadência. A cidade recusava-se a dormir.
Cidades que nunca dormem
Como escreve Joachim Schlor: "A rua é o lugar de confronto entre os diferentes grupos da cidade, e entre estes grupos, por um lado, e as forças da ordem, por outro. Do ponto de vista dos guardiães da lei, há sempre 'trop de vie', demasiada vida na rua. (…) A ideia da rua como lugar de confronto permite-nos ver a existência de diferentes grupos e de muitas formas de vida diferentes. Segundo o olhar das autoridades, há o perigo que conflitos possam surgir do confronto de variados grupos (e interesses) nas ruas: distúrbios da ordem".
A iluminação nocturna, permitindo que pessoas muito diferentes se misturem nas ruas, cria uma nova lógica de ordem. O velho tempo em que sinais sonoros anunciavam a chegada da noite e a hora de as pessoas se fecharem em casa, vai desaparecendo. A cidade que nunca dorme nasce. Não é só o divertimento que atrai novas pessoas à noite. A crescente população das cidades necessita de fornecimentos do exterior e os mercados começam a funcionar muito cedo, ainda de noite. À sua volta, vão sendo formadas tabernas que começam a ter permissão legal para vender vinho a essas horas. Cria-se um novo mundo, feito para trabalhadores casuais.
Ao longo das páginas, o autor vai confrontando a evolução de Londres, Berlim e Paris com a chegada da luz nocturna e com a evolução social e urbana que ela permite. As autoridades vêem na luz um factor de ordem. A pouco e pouco, a colocação de lâmpadas vai aumentando a sensação de ordem e segurança na noite. A conquista definitiva da noite faz-se com a electrificação, que acontece a partir de 1880.
A rápida sucessão de invenções traz a "modernidade". A noite já não assusta. Não deixa de ser curioso o espaço que o autor dá à figura do guarda-nocturno e ao seu progressivo desaparecimento. E, com isso, vai crescendo o poder das forças policiais. Trata-se, no fundo, de uma luta entre a auto-administração das comunidades e a polícia (o poder central), cada vez mais militarizada. A polícia metropolitana de Londres ganha força profissional a partir de 1870 e anda a par do alargamento da lei e ordem à noite. Com o entretenimento nocturno, novas áreas invadem o centro urbano: Montmartre, em Paris, ganha esse estatuto com a abertura do Chat Noir, em 1881-82, e do Moulin Rouge, em 1889. Com isso, surge a discussão crescente sobre a "moralidade" nocturna de que a imprensa se apressa a fazer eco.
Com tudo isto, muda também a lógica das horas de trabalho. O tempo alarga-se. Já não depende do sol mas das condições de vida e de trabalho. As horas disponíveis em cada dia são divididas segundo o tempo em que cada um está a trabalhar (ou não). A cidade pode trabalhar à noite, ao contrário da vida no campo ou nas minas, por exemplo. Em 1900, muitas profissões são já nocturnas: os transportes (dos comboios ao telégrafo ou aos correios), a distribuição do gás, água e electricidade, impressoras de jornais. Hotéis e restaurantes, limpeza nocturna, muitas fábricas. A luz nocturna permite o trabalho contínuo.
A luz de Lisboa
Em Portugal, e no caso, em Lisboa, é em 1889 que se vê a primeira vez a utilização regular da iluminação pública da luz eléctrica com base numa estação que produzia energia. É na Avenida da Liberdade e funcionava até à uma da manhã, passando, a partir daí, a ser feita a gás. Mas a luz (e não só a eléctrica) não chega à noite fora de lisboa. Quando as primeiras iluminações a electricidade com candeeiros Jablochkoff são feitas no Chiado, por oferta do rei D. Luís I, as almas tinham-se empolgado. No "Diário de Notícias" de 1 de Novembro de 1878, escrevia-se: "A cidade presenciou ontem com esse encanto instintivo que leva as multidões a embeberem-se na contemplação dos milagres da ciência e do progresso, a iluminação eléctrica, essa descoberta deslumbrante e maravilhosa, que ilude o poder das leis astronómicas, tirando às forças da Natureza os focos iluminantes que, de certo modo, substituem a ausência do dia, que parecem querer dar um sucedâneo ao Sol".
Refira-se que em Lisboa, em 1909, cerca de 90% da iluminação pública é feita por incandescência. A iluminação eléctrica é feita apenas com arcos voltaicos. No início do século XX, os focos de electricidade estão limitados à Avenida da Liberdade e aos Restauradores. A iluminação eléctrica, feita com arcos voltaicos, faz-se, nesse início de século, a zonas limítrofes dessas. O resto do país, só a pouco e pouco e muito devagar, vai sendo electrificado.
É uma evolução calma: antes de 1780, as ruas de Lisboa eram completamente escuras, apesar de, nas grandes cidades europeias, ela já existir desde 1765, como medida de segurança. Os estrangeiros que visitam Lisboa na época estranham essa escuridão total. Basta pensar que, durante o reinado de D. João V, e devido sobretudo aos custos da construção do Convento de Mafra, não havia dinheiro para mais nada. A sugestão do seu conselheiro, D. Luís da Cunha, de iluminar todas as ruas de Lisboa com lanternas, por causa dos roubos e crimes mortais, encontra ouvidos de mercador.
Só com Pina Manique as lamparinas de azeite trazem alguma luz à noite de uma cidade em ruínas por efeito do terramoto. Só os mais audaciosos, armados, andavam pela noite. A segurança de Lisboa à noite era assegurada pelos "Quadrilheiros", que em cada paróquia acudiam à sua chamada. Era uma espécie de serviço militar para serviço nocturno. Daí que também fossem apelidados de "nocturnos", "sisudos" ou "morcegos".
Mas houve regressões: em 1792, Lisboa voltava a ser completamente escura de noite. Escrevia Heinrich Friedrich Link: "E agora a noite. Antigamente, a cidade era iluminada, agora já não, e como as lojas fecham cedo, nada alumia a escuridão das vielas estreitas e mal pavimentadas. Uma horda de cães sem dono que se alimentam à custa do público erra pela cidade como lobos esfaimados e, pior ainda do que estes, é a horda de bandidos. Muitos se admiraram como nós tínhamos ousado, nestes tempos de guerra, viajar para Portugal por terra, e a garantia que esta não é de longe uma empresa tão audaz como ir de Belém a Marvila, no extremo oriental da cidade, por volta da meia-noite. Como pode um povo, entre o qual se encontram afinal homens esclarecidos, aguentar horrores deste género, que põe Lisboa ainda abaixo de Constantinopla?"
Mais tarde, Fialho de Almeida não é menos mordaz: "Entre as duas e as quatro horas e meia da manhã, Lisboa é cruel para o noctâmbulo. Não há onde comprar cigarros, onde engolir dois dedos de genebra, onde ler um jornal ao abrigo do frio. Fecharam já os cafés todos da cidade, os mais bem frequentados e os mais reles, desde o Tavares ao Refilão". Mas, nesses anos, cresce de noite uma Lisboa boémia, de que o Fado começa a ser um expoente, e onde se cruzam classes diferentes. A pouco e pouco, Lisboa ilumina-se de noite. E vai crescendo, agregando aquilo que eram os "arredores" ao seu centro. Também aqui a cidade deixa de dormir, com fábricas e serviços que não param de noite. Demorou, mas a luz também chegou à noite de Lisboa.
Pina Manique, para combater a criminalidade, julgava necessário iluminar Lisboa à noite. Mas pela frente tinha muitas resistências. Uma delas era o custo elevado do azeite utilizado como combustível nos candeeiros. Também por isso, Lisboa e Portugal só começaram a iluminar a noite mais tarde do que muitas cidades europeias. No fundo, tal era apenas o reflexo de algum atraso político, económico e social do país.
As noites do século XIX
A Europa mudou. Esse é o relato que encontramos num livro fundamental: "Nights in the Big City", de Joachim Schlör, professor da Universidade de Southampton, agora publicado em inglês (o original, alemão, é de 1991). O autor parte de um princípio: as noites das metrópoles do século XIX provocavam fascínio e medo. Por um lado, eram motivo de desejo e tentação; por outro, eram sinónimo de intimidação e terror. O prazer vivia de mãos dadas com o crime.
O autor centra-se em três cidades europeias (Paris, Berlim e Londres) e no período que decorre entre 1840 e 1930, delimitado pela introdução da iluminação a gás e, mais tarde, eléctrica nas ruas. A luz era, então, nas palavras de um londrino, tão boa como um polícia. E estes também só começam a emergir de forma mais efectiva neste período. A luz nocturna e a segurança são quase sinónimos nas grandes cidades urbanas, avivadas pelo comércio e pela revolução industrial.
A cidade do século XIX é o principal palco da modernização, onde os desafios colocados pela industrialização e urbanização eram os mais prementes. Desde logo porque, nesse período, assiste-se a uma mudança profunda da natureza da actividade nocturna. Antes da introdução da luz nas noites das metrópoles, a maioria da população urbana retirava-se para dentro das suas casas quando o dia caía. A luz trouxe para a praça pública outras questões como a segurança, a moralidade e o prazer. Tal como a qualidade das casas que os cidadãos habitavam.
O crescente número de pessoas que viviam nas ruas, porque não tinham casa, fruto de uma proletarização miserável, que Charles Dickens tão bem descreveu, cruzava-se com as hordas de gentes que começaram a ocupar os locais de prazer da noite, de restaurantes a teatros e locais de dança, como as Folies-Bergère, o Chat Noir e o Moulin Rouge, em Paris, ou o Hasenheide em Berlim. Como escrevia, em 1843, F. Gustav Kühne, "a opulência da riqueza e a miséria" das classes mais baixas confronta-se todas as noites de forma cada vez mais visível e afiada. A sexualidade conquistou também as ruas nocturnas e não apenas na forma de prostituição. Isso fez com que outros sectores sociais ficassem mais atentos às noites, como os padres e bardos contra o "vício" e, claro, advogados. A noite metropolitana tornou-se um palco onde lutavam o progresso e o liberalismo e os que associavam essa "liberdade" à decadência. A cidade recusava-se a dormir.
Cidades que nunca dormem
Como escreve Joachim Schlor: "A rua é o lugar de confronto entre os diferentes grupos da cidade, e entre estes grupos, por um lado, e as forças da ordem, por outro. Do ponto de vista dos guardiães da lei, há sempre 'trop de vie', demasiada vida na rua. (…) A ideia da rua como lugar de confronto permite-nos ver a existência de diferentes grupos e de muitas formas de vida diferentes. Segundo o olhar das autoridades, há o perigo que conflitos possam surgir do confronto de variados grupos (e interesses) nas ruas: distúrbios da ordem".
A iluminação nocturna, permitindo que pessoas muito diferentes se misturem nas ruas, cria uma nova lógica de ordem. O velho tempo em que sinais sonoros anunciavam a chegada da noite e a hora de as pessoas se fecharem em casa, vai desaparecendo. A cidade que nunca dorme nasce. Não é só o divertimento que atrai novas pessoas à noite. A crescente população das cidades necessita de fornecimentos do exterior e os mercados começam a funcionar muito cedo, ainda de noite. À sua volta, vão sendo formadas tabernas que começam a ter permissão legal para vender vinho a essas horas. Cria-se um novo mundo, feito para trabalhadores casuais.
Ao longo das páginas, o autor vai confrontando a evolução de Londres, Berlim e Paris com a chegada da luz nocturna e com a evolução social e urbana que ela permite. As autoridades vêem na luz um factor de ordem. A pouco e pouco, a colocação de lâmpadas vai aumentando a sensação de ordem e segurança na noite. A conquista definitiva da noite faz-se com a electrificação, que acontece a partir de 1880.
A rápida sucessão de invenções traz a "modernidade". A noite já não assusta. Não deixa de ser curioso o espaço que o autor dá à figura do guarda-nocturno e ao seu progressivo desaparecimento. E, com isso, vai crescendo o poder das forças policiais. Trata-se, no fundo, de uma luta entre a auto-administração das comunidades e a polícia (o poder central), cada vez mais militarizada. A polícia metropolitana de Londres ganha força profissional a partir de 1870 e anda a par do alargamento da lei e ordem à noite. Com o entretenimento nocturno, novas áreas invadem o centro urbano: Montmartre, em Paris, ganha esse estatuto com a abertura do Chat Noir, em 1881-82, e do Moulin Rouge, em 1889. Com isso, surge a discussão crescente sobre a "moralidade" nocturna de que a imprensa se apressa a fazer eco.
Com tudo isto, muda também a lógica das horas de trabalho. O tempo alarga-se. Já não depende do sol mas das condições de vida e de trabalho. As horas disponíveis em cada dia são divididas segundo o tempo em que cada um está a trabalhar (ou não). A cidade pode trabalhar à noite, ao contrário da vida no campo ou nas minas, por exemplo. Em 1900, muitas profissões são já nocturnas: os transportes (dos comboios ao telégrafo ou aos correios), a distribuição do gás, água e electricidade, impressoras de jornais. Hotéis e restaurantes, limpeza nocturna, muitas fábricas. A luz nocturna permite o trabalho contínuo.
A luz de Lisboa
Em Portugal, e no caso, em Lisboa, é em 1889 que se vê a primeira vez a utilização regular da iluminação pública da luz eléctrica com base numa estação que produzia energia. É na Avenida da Liberdade e funcionava até à uma da manhã, passando, a partir daí, a ser feita a gás. Mas a luz (e não só a eléctrica) não chega à noite fora de lisboa. Quando as primeiras iluminações a electricidade com candeeiros Jablochkoff são feitas no Chiado, por oferta do rei D. Luís I, as almas tinham-se empolgado. No "Diário de Notícias" de 1 de Novembro de 1878, escrevia-se: "A cidade presenciou ontem com esse encanto instintivo que leva as multidões a embeberem-se na contemplação dos milagres da ciência e do progresso, a iluminação eléctrica, essa descoberta deslumbrante e maravilhosa, que ilude o poder das leis astronómicas, tirando às forças da Natureza os focos iluminantes que, de certo modo, substituem a ausência do dia, que parecem querer dar um sucedâneo ao Sol".
Refira-se que em Lisboa, em 1909, cerca de 90% da iluminação pública é feita por incandescência. A iluminação eléctrica é feita apenas com arcos voltaicos. No início do século XX, os focos de electricidade estão limitados à Avenida da Liberdade e aos Restauradores. A iluminação eléctrica, feita com arcos voltaicos, faz-se, nesse início de século, a zonas limítrofes dessas. O resto do país, só a pouco e pouco e muito devagar, vai sendo electrificado.
É uma evolução calma: antes de 1780, as ruas de Lisboa eram completamente escuras, apesar de, nas grandes cidades europeias, ela já existir desde 1765, como medida de segurança. Os estrangeiros que visitam Lisboa na época estranham essa escuridão total. Basta pensar que, durante o reinado de D. João V, e devido sobretudo aos custos da construção do Convento de Mafra, não havia dinheiro para mais nada. A sugestão do seu conselheiro, D. Luís da Cunha, de iluminar todas as ruas de Lisboa com lanternas, por causa dos roubos e crimes mortais, encontra ouvidos de mercador.
Só com Pina Manique as lamparinas de azeite trazem alguma luz à noite de uma cidade em ruínas por efeito do terramoto. Só os mais audaciosos, armados, andavam pela noite. A segurança de Lisboa à noite era assegurada pelos "Quadrilheiros", que em cada paróquia acudiam à sua chamada. Era uma espécie de serviço militar para serviço nocturno. Daí que também fossem apelidados de "nocturnos", "sisudos" ou "morcegos".
Mas houve regressões: em 1792, Lisboa voltava a ser completamente escura de noite. Escrevia Heinrich Friedrich Link: "E agora a noite. Antigamente, a cidade era iluminada, agora já não, e como as lojas fecham cedo, nada alumia a escuridão das vielas estreitas e mal pavimentadas. Uma horda de cães sem dono que se alimentam à custa do público erra pela cidade como lobos esfaimados e, pior ainda do que estes, é a horda de bandidos. Muitos se admiraram como nós tínhamos ousado, nestes tempos de guerra, viajar para Portugal por terra, e a garantia que esta não é de longe uma empresa tão audaz como ir de Belém a Marvila, no extremo oriental da cidade, por volta da meia-noite. Como pode um povo, entre o qual se encontram afinal homens esclarecidos, aguentar horrores deste género, que põe Lisboa ainda abaixo de Constantinopla?"
Mais tarde, Fialho de Almeida não é menos mordaz: "Entre as duas e as quatro horas e meia da manhã, Lisboa é cruel para o noctâmbulo. Não há onde comprar cigarros, onde engolir dois dedos de genebra, onde ler um jornal ao abrigo do frio. Fecharam já os cafés todos da cidade, os mais bem frequentados e os mais reles, desde o Tavares ao Refilão". Mas, nesses anos, cresce de noite uma Lisboa boémia, de que o Fado começa a ser um expoente, e onde se cruzam classes diferentes. A pouco e pouco, Lisboa ilumina-se de noite. E vai crescendo, agregando aquilo que eram os "arredores" ao seu centro. Também aqui a cidade deixa de dormir, com fábricas e serviços que não param de noite. Demorou, mas a luz também chegou à noite de Lisboa.