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Pântano de crenças

A natureza é uma música que tanto embala como desperta o olhar em terra desconhecida. Nesta peregrinação de dúvidas e torturas, "Silêncio" recupera um passado português quase esquecido. Nem sempre a árvore da fé consegue ramificar.

Kerry Brown
21 de Janeiro de 2017 às 13:00
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"Silêncio"
O novo filme de Martin Scorsese estreou esta semana nas salas portuguesas. Há programação paralela no Museu do Oriente, Museu de São Roque e Fnac Chiado em Lisboa. Debater o papel dos jesuítas ou as relações entre Portugal e Japão são dois dos objectivos.


Chamá-lo de odisseia não seria um erro, apenas uma escolha redutora. "Silêncio" é, antes de tudo, uma peregrinação. Percurso introspectivo por condição, é dentro da alma que se faz a verdadeira viagem. A dois planos: o das personagens e o do realizador.

Martin Scorsese soube-o desde o início, quando leu há quase 30 anos o romance homónimo do japonês Shusaku Endo. Se tudo tivesse um ponto de partida, seria aí que se fixava então o desta empreitada cinematográfica - uma verdadeira batalha para transformar as palavras em imagens.

A narrativa é aparentemente simples e não esconde artifícios. Tudo começa em Portugal, quando dois jesuítas são confrontados com o desaparecimento do seu mentor. Pelo Oriente, diz-se que o "padre" Ferreira (Liam Neeson) cedeu às pressões nipónicas e se converteu. Para trás ficou a missão de evangelizar. Rodrigues e Garupe (interpretados por Andrew Garfield e Adam Driver) querem saber o que é realmente feito dele.

No momento em que é tomada a decisão de partir à sua procura, eis que surge a primeira vista aérea. Scorsese recorre a este plano como quem mostra que Deus está a assistir, a par de todas as deliberações. Ele vê tudo, silencioso. A fórmula visual é depois repetida noutros momentos cruciais, embora longe de exageros.

É de uma natureza bela e imponente - mas não poucas vezes revolta - que se vai traçando o retrato do Japão no século XVII. Sempre embrulhadas por uma fotografia irrepreensível, a chuva e a névoa são constantes. E, além disso, misteriosas.

Todo o quadro é como uma espécie de aviso de que naquele território outra natureza não se pode impor. O Japão é um pântano onde o cristianismo não criará raízes, avisa o sádico Inquisidor Inoue ao "padre" Rodrigues. Nada cresce, só o que já lá está. O jesuíta pergunta porquê. A resposta é clara: o budismo assenta no meio ambiente - que Scorsese torna imponente perante a outra missão evangelizadora.

Já antes disso, a perseguição aos cristãos - comunidade que chegou a atingir os 400 mil no Japão - era notória. Logo aos primeiros segundos, a ferida é dolorosa de assistir. Torna-se repetitiva e metódica, mas nunca deixa de surpreender: das águas a escaldar como um inferno aos afogamentos de homens crucificados. A carne torna-se podridão pelos requintes de malvadez. É como se o cristianismo fosse obrigado a beber o "veneno" das próprias histórias que quer difundir.

O "padre" Rodrigues assiste a tudo. É nesta figura - interpretação clara, mas intensa de Andrew Garfield - que a história se adensa com a longa (e perigosa) duração do filme. Define-se um paralelismo quase forçado com Jesus Cristo, pela transformação de menino em homem na aparência, com direito ao seu próprio Judas.

De cabelos longos, o seu rosto torna-se o reflexo de alguém assombrado pela própria fé. Rodrigues sabe que o sofrimento à sua volta pode desaparecer se ele renunciar às suas crenças. Fá-lo-á?

"Silêncio" é uma ambição pessoal de Scorsese que deseja, quatro séculos depois, trazer à consciência (pública, também) o carácter relativo da fé e das suas prioridades: ser mártir e impor sofrimento ou aliviar a dor alheia e pisar a própria fé, a sua imagem? A escolha está longe de ser fácil, a resposta, unânime.

O caminho é de tristeza e cedências. Por maior que seja a estranheza, Deus fica em silêncio. Porquê? Só assim Rodrigues pode ouvi-lo. Só assim podemos ouvi-lo. Enquanto não chega essa voz distante, Scorsese deixa uma lição em forma de filme: a dúvida é tão digna como a crença.


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