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Os tambores da guerra

George Orwell escrevia: "Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força". Na Síria está a provar-se que isso é a realidade dos nossos dias. A noite de Damasco vai ser brevemente iluminada pelas explosões dos mísseis de cruzeiro americanos a acertar nos edifícios governamentais sírios, nas bases aéreas, nos centros de comando e causando, claro, os célebres danos colaterais. Tal como aconteceu em Bagdad.

Negócios 30 de Agosto de 2013 às 10:27
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Há um provérbio árabe que diz: "Não declares que as estrelas estão mortas só porque o céu está nublado". O céu da Síria está pouco visível, escurecido pela guerra sem fim entre as tropas de Bashar al-Assad e os diferentes grupos de "libertadores" do país, pela utilização de armas químicas, pelas estratégias das potências globais e regionais e pelas acções subterrâneas e de contra-informação que tornam ténue a fronteira entre a verdade e a falsidade. Mas a noite de Damasco vai ser brevemente iluminada pelas explosões dos mísseis de cruzeiro americanos a acertar nos edifícios governamentais sírios, nas bases aéreas, nos centros de comando e causando, claro, os célebres danos colaterais. Tal como aconteceu em Bagdad. Os "destroyers" americanos colocados no Mediterrâneo vão encarregar-se disso.


O ataque será duro para que Obama e os seus aliados, especialmente a França e a Grã-Bretanha, mostrem que a resposta aos ataques químicos será concreta, rápida e poderosa. Será difícil haver "raids" de aviação mais vulneráveis. A banalidade da violência e do medo ficará definitivamente instalada na zona, ultrapassando as fronteiras da Síria, como já se viu com os ataques bombistas no Líbano, nos últimos dias, e pelos pavorosos dias nas cidades do Iraque. Deixará de se ver as estrelas ou, ao amanhecer, o horizonte. Algo cada vez mais difícil num Médio Oriente onde a estridência dos gritos e das bombas abafa qualquer tentativa de discussão séria. George Orwell escrevia: "Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força". Na Síria está a provar-se que isso é a realidade dos nossos dias.


O xadrez do Médio Oriente em movimento
O drama sírio, que está a destruir um país e a sua memória de milhares de anos, junta-se ao do Iraque, da Líbia e do Egipto. Todo o xadrez do Médio Oriente está em movimento e o que resta da ordem política estabelecida pela Grã-Bretanha e pela França a seguir à queda do Império Otomano está pronto para ser redesenhado. Há quem queira mudar e há quem queira perpetuar um equilíbrio que só se manteve enquanto EUA e a então União Soviética dividiam esferas de influência. Foi isso que, nas últimas semanas, fez com que a Rússia se tenha tentado aproximar do Egipto dos generais (sonhando com o tempo de Nasser), numa aliança contra-natura com a Arábia Saudita, por causa do ódio comum à Irmandade Muçulmana, e se tenha esquecido da Síria.


A China, afastada discretamente do palco principal, dá a bênção ao golpe cozinhado pela Arábia Saudita, com o apoio dos EUA, e que poderá ser benéfico para os seus complicados territórios muçulmanos do Xinjiang. É uma grande aliança que se voltará a desintegrar por causa da Síria.


O ataque químico levado a cabo, aparentemente, pelas tropas de Bashar al-Assad abriu uma nova caixa de Pandora. E mostrou que a progressão militar das forças do presidente sírio nas últimas semanas pode agora ser posta em causa. É certo que a guerra química não é uma novidade no Médio Oriente (aquando da guerra Iraque-Irão, as tropas de Saddam Hussein, então um aliado do Ocidente, utilizaram-na sistematicamente contra as forças iranianas, sem que se levantasse alguma voz em Washington, Londres ou Paris), onde é difícil encontrar santos no meio dos pecadores.

 

 

A guerra civil, sem intervenção externa ou sem um plano de paz credível, ameaçava eternizar-se. Porque também não há vitórias definitivas.

Um ataque americano poderá baralhar tudo. E nada garante que não espalhará o conflito para os países vizinhos de uma forma ainda mais devastadora.

 


O ataque químico, numa altura em que tinha chegado a Damasco a equipa de inspectores da ONU chefiada por Ake Sellstrom, abriu as portas para uma pressão considerável sob o regime de Bashar al-Assad. Mesmo que a verdade não seja tão clara como aquela que a imprensa internacional mostrou sucessivas vezes, o ataque químico causou danos irreparáveis no regime sírio e na estratégia da Rússia. Mesmo tendo poder de veto no Conselho de segurança da ONU, a Rússia deixou de poder dominar os efeitos colaterais de tudo o que foi despoletado pelo ataque químico.


Os tambores da guerra voltaram a ecoar. Mas só os mais distraídos poderão pensar que uma acção militar sem uma estratégia política sensata poderá ter algum sucesso. Porque, se se seguir o exemplo da Líbia, a queda de um ditador poderá ter como consequência a desintegração do Estado. Os resultados líbios estão ali ao lado para provarem o erro esta política. Sellstrom tem agora margem para actuar. Se, entretanto, os EUA não atacarem primeiro. Se ficar sem armas químicas, Bashar al-Assad estará mais vulnerável a qualquer ataque militar dos EUA com os seus aliados. Obama diz não querer mais uma guerra, mas os seus navios já se aproximaram da zona, preparados para ataques a "alvos" definidos.


David Cameron apoia os EUA. E a França também. A Alemanha está contra, o que só mostra como funciona a União Europeia enquanto bloco político. Em Amã, na Jordânia, tem decorrido uma reunião entre as chefias militares dos EUA, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Canadá, Turquia, Arábia Saudita e Qatar. A coligação está a compor-se, mas nada garante que, qualquer que seja a finalidade, vá terminar com o longo sofrimento do povo sírio. A voz menos importante em todas estas estratégias.


Dificilmente a NATO, que costuma ser a força operacional nestas acções, tomará uma posição unânime sobre um ataque à Síria. Muitos países do centro da Europa não vêem com bons olhos a opção militar. Por outro lado, alguns julgam que se a NATO entrar em acção, as opções para uma saída diplomática para a guerra civil se esgotarão num ápice. A isso junta-se a questão da legalidade: o Conselho de Segurança da ONU (onde estão Rússia e China) não dará o aval a um ataque e mesmo a Itália, pela voz de Emma Bonino (a ministra dos Negócios Estrangeiros) já referiu que o seu país só dará o aval a uma acção militar com cobertura das Nações Unidas.


A Turquia, defensora de uma campanha agressiva para a queda de Assad, já disse o contrário. Mas tudo aponta para que a acção seja dos "países amigos" da Síria: dos EUA À Arábia Saudita, da Grã-Bretanha à França e passando pela Turquia. Os países que têm alimentado, directa e indirectamente, os rebeldes sírios das diferentes facções.


Um ataque americano poderá baralhar tudo
O que ainda está para se entender é porque é que o regime sírio teria usado armas químicas num momento em que começava a dominar militarmente a guerra e porque é que as utilizaria quando os enviados da ONU estavam em Damasco. Estaria Bashar al-Assad a pensar que a "linha vermelha" definida por Obama era um "bluff"? Ou julgaria que Obama se move diferentemente de George W. Bush?


Neste aspecto, é muito interessante o recente relatório do International Crisis Group sobre a situação na Síria, datado de Junho. Dá-nos uma ideia do que se passa no terreno. O norte do país tornou-se uma terra sem lei e sem que a autoridade do Estado ali tenha algum peso. É sobretudo aí que as correntes mais radicais (ligadas à Al-Qaeda) impõem a sua doutrina. Cometendo atrocidades semelhantes às do regime que combatem. No sul, a influência de Bashar al-Assad é maior e há muitas regiões da Síria onde existe um equilíbrio instável e onde não tem havido actividade militar de grande envergadura.


Por outro lado, o relatório assinala que, para lá das deserções esporádicas, o núcleo duro do regime mantém-se coeso. A começar pelo exército. O Estado continua a funcionar e os salários são distribuídos. Ainda assim, tem sido importante a força militar do Hezbollah libanês e de forças iraquianas para desequilibrar a balança militar para o lado de Assad. Tudo face a um dado concreto: a oposição está profundamente dividida. A guerra civil, sem intervenção externa ou sem um plano de paz credível, ameaçava eternizar-se. Porque também não há vitórias definitivas. Um ataque americano poderá baralhar tudo. E nada garante que não espalhará o conflito para os países vizinhos de uma forma ainda mais devastadora.


Feridas que não se esquecem
A questão coloca-se também, para lá dos interesses estratégicos, no plano económico. A Síria é fraca. Hafez al-Assad, o pai de Bashar, que governou com mão de ferro o país, era especialista em política externa e na intriga interna. Esteve no poder durante três décadas, mas as estruturas do Estado viviam sobretudo dos subsídios da então URSS ou então de donativos de muitos países do Golfo que delegavam na Síria o papel de desafiar militarmente Israel. Nos anos noventa, o Iraque de Saddam Hussein dava à Síria 150 mil barris de petróleo por dia. De graça. E permitia que os sírios vendessem todos os produtos possíveis no Iraque. Com a invasão americana, esse comércio acabou.


Hoje, metade da população síria tem menos de 20 anos. Voltou a emigrar como antes da guerra civil. Há feridas que nunca se esquecem. A guerra sempre foi determinante para grandes alterações políticas na Síria. Foi ela que criou a dinastia Assad. A de 1967, contra Israel, destruiu o orgulho do seu exército e fez perder os Montes Golan. Os que perderam a guerra foram afastados e, em Novembro de 1979, Hafez al-Assad surgiu como o líder do partido Baath.

 

 

Todo o xadrez do Médio Oriente está em movimento e o que resta da ordem política estabelecida pela Grã-Bretanha e pela França a seguir à queda do Império Otomano está pronto para ser redesenhado. 

 


No Líbano, que Assad sempre considerou um quintal particular, sofreu sucessivas derrotas (a maior das quais durante a invasão israelita de 1982, que lhe destruiu a força aérea). Mas, fomentando a guerrilha, conseguiu viver até à saída de Israel do Líbano em 2000. Derrotando, ao mesmo tempo, os americanos. Deixou o filho para prolongar o legado.


Um país na encruzilhada
A Síria vive hoje na encruzilhada que poderá colocar em causa as fronteiras actuais do país. Dividindo-o e fazendo desaparecer uma potência regional. As potências coloniais fizeram e refizeram os mapas da região. E foi assim que a Síria moderna nasceu. Com o colapso do Império Otomano após a I Guerra Mundial, o Estado fundado por Faiçal I em Damasco deveria incluir o Líbano, a Síria e a Palestina. Mas a Palestina ficou sob mandato britânico e o movimento sionista ganhou espaço para o que viria a tornar-se o Estado de Israel. Após a II Guerra Mundial e o fim do mandato francês na Síria e no Líbano, ambos os países tornaram-se independentes. A Síria pareceu perder a sua identidade, dividida entre uma possível união com o Egipto ou com o Iraque. O golpe do partido Baath em 1963 terminou com estes sonhos. E, em 1971, Hafez al-Assad tornou-se o presidente.

 

 

 


Durante a Guerra Fria, a Síria transformou-se numa potência regional. O Líbano, que se tornara um oásis de liberdade cultural na região, foi sempre por ele cobiçado. As divisões religiosas e as invasões israelitas, tal a utilização do território por forças como a OLP e o Hezbollah, minaram a sua segurança. Foi ali que em 1982, com os massacres de Sabra e Shatila, os israelitas perderam a sua "superioridade moral" na guerra. Hoje, por isso mesmo, a prolongada guerra civil na Síria arrisca-se a transformar novamente o Líbano num território sem lei.


O problema é agora mais vasto. Para o International Crisis Group, "uma guerra síria de dimensões regionais está a arriscar-se a transformar-se numa guerra regional à volta da Síria". E levanta uma questão, quase étnica: o que acontecerá aos alauitas, a minoria a que pertencem os Assad e que representa cerca de 10% da população síria? Minoritários, ocuparam o poder. Os membros desta comunidade dividem-se entre o seu berço histórico, na montanha que é paralela ao litoral mediterrânico e as cidades de Damasco e Homs, onde se instalaram.


A sua religião, ligada ao xiismo, era, até há algumas décadas, distante do Islão. Os que se urbanizaram começaram a praticar ritos mais próximos do Islão. Os outros estão mais ligados a formas esotéricas. Mas como a Constituição síria prevê que o presidente do Estado seja muçulmano, Hafez al-Assad sempre fez questão de sublinhar que os alauitas eram um povo do Islão. Uma divisão da Síria, onde os curdos também terão uma palavra a dizer, parece ser o objectivo último dos Estados Unidos. Os "Tomahaws" começarão a desenhar esse novo mapa de um dos locais histórias do Médio Oriente.

 

 

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