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Entre Washington e Damasco... está o orgulho soviético

A relação entre Síria e Rússia, alimentada por interesses económicos, estratégicos e o orgulho soviético, cria um problema a Obama e aumenta a tensão com Washington.

30 de Agosto de 2013 às 10:14
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A guerra civil síria atingiu o ponto de ruptura. O ataque com armas químicas - qualquer que tenha sido o responsável - provocou uma escalada retórica pelos EUA dificilmente invertida e deixou Bashar al-Assad ainda mais isolado na comunidade internacional. Mas um aliado insiste em não abandoná-lo: Vladimir Putin. A Rússia continua a fazer de tudo para manter o regime sírio no poder e evitar uma intervenção externa no país. Com interesses antigos em Damasco, o orgulho ferido com a Líbia e a atracção simbólica do Mediterrâneo, Putin poderá esticar ainda mais a corda com os EUA. Depois de meses de arrefecimento das relações diplomáticas, a Síria pode acabar por representar uma ruptura mais definitiva entre Moscovo e Washington.


O ciclo noticioso está prestes a explodir. Naquilo que parecem ser as últimas horas até ao bombardeamento da Síria, as atenções serão raptadas pelo brilho dos mísseis, pelo barulho das explosões, e pela actualização diária do número de mortos. Mas é a 3500 quilómetros de distância, nos corredores do Kremlin, que poderá ser decidido o futuro do país. Sem o aval russo, dificilmente haverá uma solução sustentável para o pós-guerra que evite o perpetuar da guerra civil. Damasco sabe disso, Washington sabe disso e Moscovo não abdica de que assim seja.


O regime de Assad mantém-se a flutuar com o apoio russo e iraniano, que têm facilitado a compra de bens alimentares e combustível. Os interesses regionais do Irão são claros, mas o que leva Putin a apostar desta forma na Síria, desafiando abertamente os EUA? "Para Moscovo, a questão não é tanto manter o clã Assad no poder. Tal como Pequim, Moscovo rejeita a ideia de que os EUA e os aliados possam mudar regimes com base na ideia de violação dos direitos humanos", diz, ao Negócios, Miguel Monjardino, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica. "A Líbia foi trágica para a Rússia. Moscovo patrocinou uma intervenção sem autorizar uma mudança de regime e depois acabou por perder um dos principais clientes."


Putin teme também que uma vitória dos rebeldes provoque o caos e lhe crie problemas com sunitas radicais à porta de casa. Além disso, desde a morte de Nasser e a expulsão dos generais soviéticos do Egipto na década de 70, que Moscovo ficou limitado a uma influência marginal na região. Com o cenário geoestratégico em convulsão e a evoluir muito rapidamente, Putin quer ser um actor mais presente.


"Recorde-se que os EUA estão a reduzir a exposição ao Médio Oriente, com menos Arábia Saudita e menos Israel e mais apoio aos militares na Turquia e à Irmandade Muçulmana no Egipto. Os dois últimos entraram em colapso", refere Monjardino. "Ou Washington investe a sério ou abre o flanco a uma maior influência russa na região."


Um casamento de interesses antigo
O aprofundamento das relações entre a Rússia e a Síria remontam à Guerra Fria. Em 1971, a então União Soviética instalou uma base naval em Tartus. Depois de o capital russo ter sido maltratado em Chipre, a Síria dá a Moscovo acesso ao Mediterrâneo, uma obsessão antiga, onde a Rússia deseja ter uma forte presença desde Catarina II. Em troca, perdoou 9,8 mil milhões de dólares em dívidas sírias. Nove anos depois, Hafez al-Assad, pai de Bashar, seria nomeado representante dos interesses soviéticos no Médio Oriente, ao mesmo tempo que Damasco se tornava num dos principais importadores de armamento russo. Uma relação que continua. Maria João Tomás, do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais, escrevia, em 2012, que a compra de armas vale quatro mil milhões de dólares por ano.


Não é por isso de admirar que, a dias de ser atacado pelos EUA, Assad tenha optado por dar uma entrevista ao jornal russo "Izvestia". A mensagem principal? "Todos os contratos assinados com a Rússia estão a ser honrados", afirmou o presidente sírio, respondendo a uma pergunta sobre acordos de armamento. Segundo Assad, a crise económica, a guerra civil e as sanções não afectaram a relação entre os países. "A Rússia continua a dar à Síria aquilo que ela precisa para se defender e ao seu povo", acrescentou, explicando que esse apoio se traduz numa posição política forte nos palcos internacionais, numa assinatura e cumprimento de contratos militares, acordos comerciais e empréstimos bilaterais.


A ajuda russa - e de Teerão - está a manter o pescoço de Assad à tona da água. À medida que a guerra se arrasta e as sanções internacionais se acumulam, fica para trás um rasto de campos agrícolas inutilizados (20% do PIB), fábricas destruídas, produção de petróleo parada (35% das exportações) e um turismo ferido de morte. Segundo o Banco Mundial, a economia síria afundou 20% em 2012. A inflação terminou o ano passado acima dos 50% e a imprensa local fala de aumentos do preço dos bens essenciais entre 200% e 300%. O desemprego terá quintuplicado desde o início da guerra (8,6% em 2010) e a libra síria afundou para um sexto do seu valor, o que deixa Damasco de mãos atadas para comprar ao estrangeiro sem a ajuda dos aliados.


A relação entre a Rússia e a Síria deverá movimentar perto de 20 mil milhões de dólares por ano. O suficiente para Putin hesitar em abrir mão do regime de Assad. "Além das importações agrícolas, das indústrias de aço e metalomecânica, dos transportes aéreos, a Rússia tem importantes interesses energéticos na Síria, de exploração e distribuição de gás e de petróleo, com empresas como a Stroitransgaz e Tafneft", esclarecia Maria João Tomás. "Em parceria com a companhia de gás Síria, estão concluídos, e em funcionamento, o Gasoduto Árabe, e estações de exploração e tratamento de gás, quer a sudeste, onde se encontram os maiores campos de hidrocarbonetos sírios, quer no centro, uma zona ainda numa fase mais inicial de exploração."


Um problema de ego?
Paulo Gorjão, director do Instituto Português de Relações Internacionais e Segurança (IPRIS), lembra, contudo, que a informação que chega ao Ocidente é muito parcial. "Sabemos que a Rússia é um aliado, mas não conhecemos a sua influência real. Para se perceber a posição russa, é preciso saber que a Síria é um estado cliente e que lhes dá acesso ao Mediterrâneo mas, principalmente, que Putin é muito influenciado pela experiência de fim da URSS e do aproveitamento que os EUA fizeram da fraqueza de Yeltsin", explica. "Se há uma linha de continuidade com Putin, é esta ideia de que a Rússia foi maltratada. Como se concilia esta posição com a linha desenhada na areia pelos EUA? É a pergunta do milhão de dólares."


De facto, a Síria é mais um num rol de episódios de arrefecimento das relações entre Moscovo e Washington. Putin e as lideranças russas sempre viram Obama como um líder fraco, ao mesmo tempo que recusam ser tratados como uma potência secundária. Mais: este ambiente de instabilidade não é propriamente negativo. Distrai os EUA do centro da Europa e faz subir o preço do petróleo. O problema é que o ataque com armas químicas desafiou directamente a liderança e a palavra de Obama. Na realidade, no jogo de "ver quem pisca primeiro os olhos", se os EUA decidirem atacar a Síria, a Rússia não tem muitas opções. No entanto, voltar a passar por cima de Moscovo terá outros riscos, entre os quais uma maior radicalização russa e a aproximação indesejável (para os EUA) em relação a Teerão e Pequim.


A Rússia já iniciou o reforço da sua armada no Mediterrâneo, com um grande navio de combate anti-submarino, o que indicia pouca vontade de ceder. "Moscovo não quer, de forma alguma, perder um aliado. Sem uma garantia muito clara de que não haverá mudança de regime, não sei como haverá acordo para a Síria", sublinha Paulo Gorjão. "De qualquer forma, não sei se o tempo para isso não passou já."

 

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