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O que contam os papéis das Finanças

Pedidos de ajuda, reclamações, denúncias, devaneios. Há um pouco de tudo nas cartas de cidadãos enviadas ao ministro das Finanças. Esta correspondência está no acervo do Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças.

02 de Setembro de 2016 às 12:00
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Quem passa no Largo Terreiro do Trigo, em Lisboa, não imagina o que está dentro aquele edifício amarelo, discreto, em frente ao Chafariz d'El Rei. No século XVIII, foi um armazém de cereais que dava apoio à alfândega logo ali ao lado. Agora serve para guardar os milhares de documentos que constituem o Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças. E o que tem esse arquivo? Papéis que nos ajudam a compreender a História e as histórias do país através das contas públicas. As despesas com visitas reais, o imposto sucessório de figuras de relevo como Fernando Pessoa ou Calouste Gulbenkian, o valor da compra do navio escola Sagres ou a ajuda do Estado para a reconstrução da ilha da Horta após o sismo de 1926, são algumas das informações que podemos encontrar nos documentos aqui guardados. Além da documentação oficial, também existem cartas e ofícios vindos do gabinete dos vários ministros das Finanças, alguns bastante curiosos.

Espera-nos Ana Maria Gaspar, responsável pelo arquivo, criado em 1999 pelo ministro Sousa Franco. É ela que nos faz a visita guiada às instalações, onde trabalham sete pessoas. Estamos agora na sala de leitura presencial, onde se encontram várias mesas com cadeiras. É aqui que são recebidas as pessoas que querem consultar documentos. Hoje está vazia. São sobretudo académicos que se sentam aqui a pesquisar mas o público em geral também utiliza este serviço. "Os nossos utilizadores contactam-nos sobretudo pela Internet", explica. Muitos procuram matrizes prediais rústicas e urbanas antigas do distrito de Castelo Branco e de outros pontos do país, que aqui estão depositadas. "Imagine, eu tenho um terreno que tem duas oliveiras e três laranjeiras e o meu vizinho do lado diz que uma é dele, que mudaram o marco [da propriedade]. Se na propriedade registada diz duas oliveiras e três laranjeiras, isso serve de prova". Ana Maria Gaspar recorda que, há uns anos, houve muita gente a bater à porta do arquivo por causa de uma lei em que os proprietários de terrenos na orla marítima tinham de demonstrar que estavam em posse privada até uma determinada data. Nessa altura, diz, "as pessoas andavam loucas à procura de provas".

Nos depósitos do arquivo, é evidente a evolução tecnológica. De um lado, estão caixas de madeira ou papelão que contêm os documentos em papel. Do outro, estão os documentos já em microfilme.
Nos depósitos do arquivo, é evidente a evolução tecnológica. De um lado, estão caixas de madeira ou papelão que contêm os documentos em papel. Do outro, estão os documentos já em microfilme.


O arquivo é também um centro de apoio para alguns serviços de finanças porque, através de um protocolo com a Autoridade Tributária, faz microfilmagem de impostos já extintos, como o imposto sucessório. "Muitas vezes, os serviços de finanças precisam de alguns elementos dos processos para tratarem determinados assuntos administrativos", explica aquela responsável. E dá um exemplo: "Vai lá um contribuinte que precisa de saber em que nome estava um determinado prédio. Eles pedem-nos por e-mail e nós temos uma plataforma online onde colocamos os processos".

Mande prender, senhor ministro!

No meio dos documentos que vêm do gabinete do ministro, estão cartas de cidadãos, recebidas até 2003. Nessa série documental, está a carta de uma senhora "que dizia que era a Imperatriz de Portugal e que queria notas com a cara dela" e outra "de um senhor de Aljezur que pedia um carro com rodas largas, mais um apartamento em Portimão, pedia imensas coisas…", revela aquela responsável com um sorriso. O ministro das Finanças também recebe recomendações de cidadãos. Como o senhor Mário, do Porto, que escrevia frequentemente ao ministro a queixar-se dos preços. "Ele dizia assim: 'Na mercearia tal, o bacalhau vende-se a tantos escudos, mas um bocadinho mais abaixo vende-se a menos', e depois pedia para prenderem aquele comerciante que vendia mais caro", conta Ana Maria Gaspar, entre risos. Também existem denúncias anónimas. Um dos documentos já amarelecidos pelo tempo tem a data de 1894 e foi escrito por um funcionário das Alfândegas que não apreciava a conduta dos colegas do posto fiscal do Rossio. Acusava-os de não exercerem a devida fiscalização por "relaxamento", sendo essa situação uma das muitas "poucas vergonhas" que ali se passavam.

Chegam também à secretária dos ministros das Finanças apelos desesperados. No tempo de Miguel Cadilhe, há registo de uma senhora que se queixa da forma como foi atendida num serviço de finanças onde não conseguiu resolver um determinado problema. O ministro interessou-se pelo caso e mandou o chefe de gabinete inteirar-se do que se tinha passado. "Depois, temos a carta da senhora a agradecer e a dizer que nunca pensou que uma carta que escreveu debaixo de um pinheiro, um lamento, pudesse ter tido resposta".


Os documentos, diz aquela responsável, também revelam a sensibilidade de quem tem a pasta das Finanças. "Às vezes, pensamos que são pessoas que não ligam aos problemas comezinhos. Nós, como trabalhamos com a documentação do gabinete do ministro, vimos coisas assim, afectuosas". E recorda, a título de exemplo, Sousa Franco, que quando saiu do Ministério escreveu louvores a vários colaboradores. "Ele não escreveu um monte para aquele grupo, um monte igual para outro grupo", enfatiza, eram palavras personalizadas.

Os candeeiros de Roma

Os gostos dos ministros em matéria de decoração também são perceptíveis na documentação que está no Arquivo. Um ofício de 31 de Maio de 1954 dá conta que o ministro das Finanças, Artur Águedo de Oliveira, estava interessado em comprar, para o Ministério, uns candeeiros que viu a decorar "a sala de jantar de um hotel" e que apreciou "numa das suas visitas a Roma". "Nós não fazemos ideia se eles vieram a ser adquiridos", diz Ana Maria Gaspar. Nesta altura, o edifício sede do Ministério das Finanças, na ala virada para a Avenida Infante D. Henrique, em frente à estação fluvial, estava em obras. Um funcionário do arquivo mostra-nos as plantas, de finais da década de 1940. A remodelação da área governamental do Ministério das Finanças teve como responsável Porfírio Pardal Monteiro, um dos mais importantes arquitectos portugueses da primeira metade do século XX. Já no novo edifício das Finanças foi inaugurada a "Exposição Histórica do Ministério das Finanças", a 5 de Julho de 1952, que marcava os 150 anos da criação da Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda.

A pensão de Salazar

Quando caiu da cadeira, a 3 de Agosto de 1968, no Forte de Santo António, no Estoril, Salazar ficou incapacitado para governar. Um despacho assinado pelo ministro das Finanças a 4 de Outubro desse mesmo ano atribui uma pensão vitalícia ao Presidente do Conselho de Ministros, no valor de 25.600 escudos mensais. Recebeu-a até morrer, a 27 de Julho de 1970, comprova o processo. Neste Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças, estão também todos os processos relativos a pensões de sangue atribuídas às famílias dos militares que morreram nas várias guerras. Na I Guerra Mundial, muitos jovens soldados casavam-se pouco antes de partirem para combater. Deixavam viúvas que "eram raparigas novas e que queriam refazer a vida", explica Ana Maria Gaspar. Muitas "viviam maritalmente, não casavam para não perderem a pensão", só que "às vezes havia pessoas que iam denunciar o caso e elas tinham de devolver todo o dinheiro que tinham recebido". Os registos dos soldados permitem ainda estudar as causas de morte, diz. Uma das conclusões é a de que "houve muitas mortes no Ultramar que não foram derivadas de feridas de guerra mas de doenças que eles apanhavam". Nem todas as pensões de sangue são relativas a militares mortos na guerra. A mulher e a filha de Sidónio Pais, o Presidente da República assassinado na estação do Rossio a 14 de Dezembro de 1918, também receberam este apoio financeiro do Estado.


Salazar teve direito a uma pensão quando caiu da cadeira em 1968. O Presidente do Conselho ficou a receber 25.600 escudos por mês. Uma das funções do arquivo é microfilmar os livros com as matrizes prediais rústicas e urbanas antigas e os impostos já extintos.
Salazar teve direito a uma pensão quando caiu da cadeira em 1968. O Presidente do Conselho ficou a receber 25.600 escudos por mês. Uma das funções do arquivo é microfilmar os livros com as matrizes prediais rústicas e urbanas antigas e os impostos já extintos.


Foi Sidónio Pais que alterou a Lei de Separação entre as Igrejas e o Estado, promulgada em 21 de Abril de 1911, numa tentativa de apaziguamento das relações com a Igreja. Esta lei (cujas provas tipográficas do documento original estão aqui guardadas) foi um dos marcos do movimento republicano, que defendia a autonomia entre o poder civil e o religioso. A documentação relativa a este período é muito solicitada, diz Ana Maria Gaspar, porque "todos os bens que não eram de culto foram incorporados no património do Estado". Entre eles, objectos com valor artístico, que "deveriam incorporar museus nacionais" que os republicanos "tinham a intenção de criar em cada distrito". O arquivo tem os arrolamentos desses bens culturais e a respectiva história.

A Nau Portugal que virou

Um dos momentos altos do Estado Novo foi a "Exposição do Mundo Português de 1940", que decorreu em Lisboa, de 23 de Junho a 2 de Dezembro de 1940. Este evento teve como secretário-geral o cineasta José Leitão de Barros. Terá sido sua a ideia de construir a Nau Portugal, de forma a homenagear os descobridores portugueses no evento. A embarcação foi construída nos estaleiros do Mestre Manuel Bolais Mónica, na Gafanha da Nazaré. "Era toda em dourado. O dourado foi retirado de alguns bocadinhos de retábulos que estavam em mau estado", explica Ana Maria Gaspar, acrescentando que o processo de construção da nau também consta no acervo deste arquivo, e teve um momento que ficou na história. Assim que foi lançada à água, a nau tombou. Também o processo da construção da Ponte 25 de Abril está registado ao pormenor. Os relatórios trimestrais são acompanhados de fotografias que mostram a evolução da empreitada. Um outro relatório que pode ser consultado é o da comissão que investigou as transacções de ouro efectuadas entre as autoridades portuguesas e alemãs entre 1936 e 1945. Sobre este período da História, há ainda documentos relativos à despesa do Estado português com refugiados italianos e alemães na sequência da II Guerra Mundial.

Descemos ao piso inferior e entramos noutro mundo. São prateleiras e mais prateleiras repletas de caixas de cartão ou de madeira que contêm documentos oriundos de repartições de Finanças. Muitas têm processos de imposto sucessório. "Aqui é o serviço de Finanças Lisboa 3, ali é Viseu", aponta Ana Maria Gaspar. Muitos já foram microfilmados. Continuamos caminho. "Aqui é a área de microfilmes". Entramos num outro "cenário", mais moderno. A temperatura nesta secção é mais baixa. "Tem de estar a 19, 20 graus", explica. Por momentos, parece que entrámos numa nave espacial. A técnica puxa várias prateleiras de metal e explica que guardam processos de impostos extintos, como a contribuição industrial, o imposto profissional e o imposto complementar em microfilme. "Raramente são pedidos", diz, "às vezes alguém precisa para comprovar que trabalhou num sítio, às vezes até para pensões". Estamos já no fim da visita. Ana Maria aponta para uma porta grande. "Era aqui que atracavam os barcos com os cereais. Antes do aterro,o rio Tejo vinha até aqui." Este é um edifício com História que guarda muitas histórias. 

A ala governamental do Ministério das Finanças sofreu obras em finais dos anos 1940. As plantas do arquitecto Pardal Monteiro estão aqui guardadas. Alguns documentos do acervo estão acompanhados de fotos, como o da encomenda de um busto de Marcelo Caetano.
A ala governamental do Ministério das Finanças sofreu obras em finais dos anos 1940. As plantas do arquitecto Pardal Monteiro estão aqui guardadas. Alguns documentos do acervo estão acompanhados de fotos, como o da encomenda de um busto de Marcelo Caetano.



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