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O resgate do banco mais antigo do mundo

No centro da crise do sector financeiro em Itália está o banco mais antigo do mundo. Tão antigo que ajudou a financiar a expedição de Cristóvão Colombo às Américas. O Monte dei Paschi di Siena nasceu em 1472, em Siena. O banco e a cidade têm uma relação umbilical.

06 de Janeiro de 2017 às 11:47
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Quem chega ao centro histórico de Siena tem a sensação de que recuou no tempo até à Idade Média. As ruas tortuosas e estreitas e a cor de terra dos edifícios mergulham os turistas no passado. Siena foi classificada pela UNESCO como Património Cultural da Humanidade, em virtude da sua riqueza histórica e artística. Tem quase 60 mil habitantes e fica situada na região italiana da Toscânia, a 70 quilómetros de Florença, a capital da região. Esta cidade medieval está agora debaixo dos holofotes mediáticos, por maus motivos. É aqui, na Piazza Salimbeni, que está a sede do banco mais antigo do mundo em actividade - o Banca Monte dei Paschi di Siena -, fundado em 1472. É este banco que está no centro da crise no sector financeiro italiano, que tantas dores de cabeça está a dar ao Governo de Roma.

O pilar da cidade

Diz-se que Siena foi fundada no século VIII antes de Cristo pelos gémeos Aschio e Senio, filhos de Remo, um dos lendários fundadores de Roma. E, por isso, o símbolo da cidade é a loba que, na lenda, amamenta Rómulo e Remo. O centro nevrálgico desta povoação é a Piazza del Campo, uma praça inclinada em forma de concha, com nove linhas brancas desenhadas no chão de tijolos vermelhos, que representam os nove membros do governo de Siena no século XIV. Esta praça, onde estão a imponente Torre del Mangia e a Fonte Gaia, é todos os Verões palco de um evento que faz vibrar os habitantes e que se tornou mundialmente conhecido - o Palio di Siena. Trata-se de uma corrida de cavalos ao redor da praça, que dura 90 segundos e que ocorre a 2 de Julho e 16 de Agosto, atraindo muitos turistas. Os 17 "contrade" (bairros) da cidade concorrem entre si. A corrida ancestral serviu de pano de fundo ao filme de James Bond - "Quantum of Solace".

Uma boa parte da população da cidade trabalha para o banco Monte dei Paschi di Siena. Há mesmo uma relação umbilical entre as pessoas e o "il Monti" há séculos. Em tom de graça, diz-se que quem vive em Siena ou trabalha para o banco, aspira fazê-lo, ou já recebe por lá a sua pensão.
O interior do Palazzo Salimbeni, onde fica a sede do banco, está repleto de obras de arte
O interior do Palazzo Salimbeni, onde fica a sede do banco, está repleto de obras de arte
A cidade ganhou um forte impulso económico no século XIII, beneficiando da construção da Via Francigena, uma estrada que na Idade Média ligava França a Roma. Siena tornou-se num centro comercial e financeiro. A sua época de ouro foi entre 1260 e 1348. Mas a peste negra, que devastou a cidade, trouxe a decadência. Mais de metade da população morreu. Para dar uma ajuda à economia, é criado no século XV, pelos magistrados daquela república, um banco sem fins lucrativos, o Monte di Pieta, com base nas casas de penhores que os monges franciscanos montaram para ajudar os pobres. A gestão rodava entre as famílias mais importantes da cidade. O banco começa por conceder empréstimos às classes mais desfavorecidas da população. Os clientes eram essencialmente agricultores.

Numa fase inicial, o banco aceitava roupas e jóias como garantia dos empréstimos. Depois passou também a aceitar terras. Dessa forma, tornou-se num grande proprietário de terrenos agrícolas e pastos. Nessa altura, Siena era uma cidade-estado, tal como a sua rival Florença, e os Médicis, uma poderosa família nobre descendente de comerciantes e banqueiros, dominavam a região através de um sistema de clientelismo. Na verdade, eram eles que governavam sem terem qualquer cargo político. Emprestavam dinheiro a reis, papas e imperadores. Esta dinastia chega oficialmente ao poder no século XV. Em 1624, a cidade de Siena torna-se parte do Grão Ducado da Toscânia e o banco muda de nome para Banca Monte dei Paschi, denominação que mantém até hoje. A instituição financeira teve sempre um papel impulsionador da economia local, ajudando negócios e suportando obras de caridade e artistas. Os Médicis acabam por perder o poder com o desenrolar da história e, no século XIX, depois de várias guerras sangrentas, dá-se a unificação da Itália.

A era do crescimento

Já no século XX, o banco começou a alastrar a sua área de influência para outras regiões italianas, abrindo sucursais em Empoli, Florença, Perugia, Nápoles e Roma. Em 1936, durante o regime de Mussolini, é oficialmente declarada uma instituição de crédito pública. Nesta altura, quando outros bancos italianos estão em dificuldades financeiras, o Monte dei Paschi consegue manter-se sólido. A sua política era amealhar pelo menos metade dos lucros do ano e aplicar o restante em projectos públicos para beneficiar a cidade de Siena e arredores. Simultaneamente, era avesso ao risco no que diz respeito à concessão de crédito. Uma lição que aprendeu com os prejuízos que sofreu ao participar no financiamento à expedição de Cristóvão Colombo às Américas, em 1492. A partir do fim da II Guerra Mundial, o "il Monti" consolida a sua presença em Itália e vai para além-fronteiras, abrindo escritórios nos grandes centros financeiros de Nova Iorque, Singapura, Frankfurt e Londres. Mantém a prática de reservar parte dos seus lucros para financiar acções cívicas em Siena, como a corrida de cavalos Palio di Siena e outras actividades desportivas, sociais e culturais.

Nos anos 90, a estratégia do Banca Monte dei Paschi di Siena passa por um plano de expansão, quer territorial quer operacional. Adquiriu alguns bancos regionais e reforçou o desenvolvimento de produtos em segmentos como os seguros de vida, o crédito ao consumo, a banca de investimento, a gestão de activos e os fundos de pensões. Nesta década, a instituição passa por várias mudanças. Em 1995, o "il Monti" divide-se em duas instituições - um banco e uma fundação. A fundação tem 16 administradores - oito são indicados pela cidade de Siena e os restantes pela província, a universidade local e arquidiocese de Siena. É a fundação que controla a entidade bancária e utiliza os dividendos para apoiar projectos de interesse público em áreas como a caridade, a investigação científica, a arte, a educação e saúde, na cidade e na província de Siena. Quatro anos depois, a 25 de Junho de 1999, o banco estreia-se na bolsa de Milão. Será uma nova fase. Após o IPO, a Fundação ficou com cerca de 75% das acções do banco. O sucesso da operação deu impulso a uma nova vaga de aquisições.

Em Novembro de 2007, o banco avança para a aquisição de 55% do Biverbanca - Cassa di risparmio di Biella e Vercelli, um banco focado no crédito à habitação e produtos financeiros relacionados com imóveis, assim como no crédito a pequenas e médias empresas. No ano seguinte, dá um passo de gigante ao comprar o Banca Antonveneta ao Santander, por 9 mil milhões de euros. Pouco tempo antes, o banco espanhol tinha comprado o mesmo Antonveneta por cerca de seis mil milhões. Com este negócio, o Banca Monti dei Paschi torna-se o terceiro maior banco de Itália em activos, logo depois do UniCredit e do Intesa Sanpaolo. Mas a operação veio a revelar-se desastrosa. A tempestade já estava a caminho nos mercados financeiros. Foi nesse terrível ano de 2008 que os problemas começaram a vir à tona. Um ano depois, o "il Monti" recebe a primeira ajuda estatal, no valor de 1,9 mil milhões de euros.

Tempos turbulentos

Giuseppe Mussari era o presidente do banco nesta altura. Nomeado por políticos locais que controlam a fundação, este advogado, sem experiência de banca, foi acusado de má gestão e fraude ao ter usado contratos derivados para esconder prejuízos superiores a 925 milhões de euros relativos ao negócio do Antonveneta e a outras transacções. A denúncia é feita já em 2013 pela Bloomberg e dá origem a uma investigação criminal. Entretanto, Mussari já tinha renunciado ao cargo. Ele e outros dois antigos executivos do banco viriam a ser condenados a três anos e meio de prisão pelo crime de obstrução aos reguladores.
O palácio do século XIV, em estilo gótico, que tem o nome da instituição escrito no pórtico, sofreu várias alterações ao longo dos anos.
O palácio do século XIV, em estilo gótico, que tem o nome da instituição escrito no pórtico, sofreu várias alterações ao longo dos anos.
Em Fevereiro desse ano, o banco pede uma ajuda ao Estado por causa deste escândalo e recebe nova injecção de capital de cerca de 4 mil milhões de euros, que inclui um "rollover" da anterior ajuda, ou seja, uma renegociação da dívida com prolongamento do prazo de pagamento. Em Novembro de 2013, a Comissão Europeia dá luz verde a um plano de reestruturação do banco, que incluía um resgate do Estado, venda de activos, encerramento de sucursais e a eliminação de 8 mil postos de trabalho.

Já em Outubro de 2014, o banco chumba nos testes de stress do Banco Central Europeu, tornando-se o banco com menores rácios de capital entre as 130 instituições financeiras postas à prova. A situação veio a revelar-se mais grave do que se pensava. O exercício mostrou que o banco precisava de 2,1 mil milhões de euros para cumprir os rácios mínimos nas condições testadas. Nesta altura, o Banca Monti dei Paschi tinha acumulado 9,3 mil milhões de euros de prejuízos em três anos e estava entre a espada e a parede. O vice-governador do Banco de Itália disse, na altura, que aquele teste do BCE era como "pedir a alguém que está a recuperar de uma doença para correr a maratona". A "doença" agravou-se. A 31 de Dezembro de 2015, o banco tinha registados no seu balanço 52 mil milhões de euros de crédito malparado e as provisões cobriam menos de metade desse valor. 2016 começou mal para a instituição financeira. As acções caíram a pique devido à onda de vendas no sector na Europa. Em Junho, começam as conversações com a Comissão Europeia para o plano de recapitalização do banco que incluía a utilização de fundos públicos, o encerramento de 500 filiais e o despedimento de 2.600 trabalhadores até 2019.


A 29 de Julho, o banco volta a chumbar nos testes de stress do BCE e anuncia um aumento de capital de 5 mil milhões de euros que tem como data-limite o final do ano. Em Setembro, o presidente do banco, Fabrizio Viola, deixa o cargo. Nesta altura, o plano de recapitalização já está em marcha. Marco Morelli assume a presidência em Outubro e começa um "road-show" pelo mundo para tentar atrair investidores. Mas a crise política no país estava iminente com o referendo para mudar a Constituição proposto pelo então primeiro-ministro Matteo Renzi. A grande exposição do Monte dei Paschi à dívida soberana de Itália afasta os investidores. Os italianos votam "não" no escrutínio e, a 4 de Dezembro, Renzi demite-se, tal como tinha prometido. Os mercados financeiros reagem penalizando a banca italiana.

A situação de incerteza quanto ao futuro da instituição fez com que os depositantes levantassem, entre 30 de Setembro e 13 de Dezembro, 6 mil milhões de euros. Poucos dias depois do referendo, o banco pede ao BCE o prolongamento do prazo do aumento de capital até meados de Janeiro. O pedido é rejeitado e as acções do banco afundam. A situação era grave. O "il Monti" só tinha liquidez para 29 dias, afirmou o BCE num comunicado. O banco não conseguiu captar um accionista de referência (o fundo soberano do Qatar chegou a mostrar interesse, mas acabou por recuar) e, a 22 de Dezembro, anuncia que o aumento de capital falhou, tendo conseguido captar apenas cerca de 2,5 mil milhões de euros. Um dia antes, o Governo italiano, agora liderado por Paolo Gentiloni, reuniu de emergência para levar à aprovação do Parlamento um pacote de ajuda à banca de 20 mil milhões de euros para garantir a estabilidade no sector financeiro. O Banca Monti dei Paschi pede acesso a essa linha "cautelar", como lhe chamou o executivo, e recebe luz verde.
O banco patrocina, todos os verões, um evento muito antigo, a corrida de cavalos Palio di Siena.
O banco patrocina, todos os verões, um evento muito antigo, a corrida de cavalos Palio di Siena. Stefano Rellandini/Reuters
O BCE fez as contas e anunciou que o terceiro maior banco italiano precisará de uma injecção de capital de quase 9 mil milhões de euros, em consequência da forte deterioração das suas condições financeiras. O ministro italiano das Finanças reagiu de imediato numa entrevista ao jornal Il Sole 24 Ore. "Além de uma carta de cinco linhas e três números, teriam sido úteis algumas explicações", afirmou Pier Carlo Padoan, alertando que este movimento "opaco" terá "consequências para outros bancos". O "il Monti" será a primeira peça do dominó a cair? Se assim for, é certo que a cidade de Siena não será mais a mesma. "O banco é muito central para a vida da cidade", diz Giuseppe Ragusa, economista e professor na Universidade de Luiss, em Roma, citado pelo Telegraph. Na realidade, sublinha, "Siena, basicamente, é o Monti dei Paschi".


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