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O prodígio da literatura e a “carta” de Tolentino a Lídia Jorge

Foi há mais de quarenta anos que o cardeal José Tolentino Mendonça escreveu uma carta a Lídia Jorge. A escritora tinha lançado “O Dia dos Prodígios”, livro que o então jovem Tolentino sentiu como um “terramoto”. Reencontraram-se agora na apresentação do livro “Misericórdia”, a 21 de outubro, na Biblioteca Palácio Galveias.

Ricardo Perna
Negócios 28 de Outubro de 2022 às 14:45

Foi há mais de quarenta anos que o cardeal José Tolentino Mendonça escreveu uma carta a Lídia Jorge. A escritora tinha lançado "O Dia dos Prodígios", livro que o então jovem Tolentino sentiu como um "terramoto". A autora respondeu-lhe pouco tempo depois. A troca de correspondência foi retomada na apresentação do livro "Misericórdia", editado pela Dom Quixote. Aconteceu a 21 de outubro, na Biblioteca Palácio Galveias, em Lisboa. "É belíssimo e comovente ver que Lídia Jorge conta a história da sua mãe mantendo-se fiel àquilo que é o programa da sua literatura, que é contar a história dos últimos."

  

 

"Eu tenho com Lídia Jorge uma história. Quando tinha 16 anos, saiu ‘O Dia dos Prodígios’, em 1979, 1980, e nos meus 16 anos eu li aquele livro e foi um terramoto. Escrevi a Lídia Jorge. Passado um tempo, ela escreveu-me uma carta longa, que ainda conservo. Anos depois, quando a encontrei, disse: olhe, eu sou aquele rapaz que um dia lhe escreveu sobre ‘O Dia dos Prodígios’, e ela olhou para mim e disse-me: sabes que eu esperei muito tempo que tu me voltasses a escrever. Eu tinha 16 anos, a carta que ela me escreveu era suficiente e de facto eu não me tornei um seu correspondente, mas queria, querida Lídia Jorge, que visse estas minhas palavras como uma carta que tantos anos depois eu lhe escrevo."

 

As palavras do poeta e teólogo José Tolentino Mendonça voltaram a ter a resposta de Lídia Jorge. "Considero que a literatura é uma carta que a gente envia para longe. Pode não ter os seus leitores no momento, mas para nós há sempre a ideia de que alguém, longe, poderá ler, longe na geografia e longe no tempo, e, portanto, poderia dizer muitas coisas, tinha muitas coisas para dizer e também muitos votos mas, vamos reduzir e dizer: muito obrigada porque, de facto a carta enviada para longe, há quase 40 anos, afinal teve agora uma resposta. E que resposta."

 

Ei-la: 

 

"As mães são as mais altas coisas que os filhos criam, porque se colocam na combustão dos filhos, porque os filhos estão como invasores dentes-de-leão no terreno das mães. E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos, e atiram-se, através deles, como jactos para fora da terra. E os filhos mergulham em escafandros no interior de muitas águas, e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos e na agudeza de toda a sua vida."

 

Estes versos foram escritos pelo poeta Herberto Helder, que perdeu a sua mãe quando tinha 8 anos de idade. O escultor Miguel Ângelo perdeu a mãe quando tinha 6. Aos 22, plasmou uma das imagens maternas mais plangentes e icónicas, "Pietà": a mãe está sentada e o filho morto repousa no seu colo. Os biógrafos do artista são unânimes em sublinhar como em tantos momentos a sua arte não é outra coisa senão uma espécie de diálogo, uma evocação discreta, um grito, para essa figura ausente, e por isso mesmo desmedidamente presente.

 

A mãe, na "Pietà", tem um corpo enorme, capaz de albergar o corpo do filho adulto, mas tem o rosto de rapariga. O corpo parece uma jangada, um salva-vidas, uma cidade-refúgio. O rosto, porém, desenha-se impávido, como se mirasse através daquele sofrimento outro lugar, e se fixasse não naquela morte, mas na infância incólume do filho. É um enigma, este desacordo entre o rosto da mãe e o contexto que aquela situação evoca, a morte daquele filho (…) 

 

Lídia Jorge perdeu a mãe (…), e perder talvez seja aqui um verbo inadequado. Talvez devêssemos antes dizer reencontro. O livro parece partir da dedicatória final: "A Maria dos Remédios, minha mãe muito amada, que me pediu que escrevesse esta história." Há uma literatura inteira, como sabemos, que nasce do impacto de uma experiência semelhante (…).

 

Lembro alguns escritores que fizeram este exercício que Lídia Jorge propõe neste magnífico romance. Georges Simenon escreveu o livro "Carta Para Minha Mãe". Ele escreveu este texto quando ela estava ainda viva, mas a abertura do livro diz: querida mãe, passaram-se três anos e meio da tua morte, pois morreste aos 91 anos de idade, e só agora, talvez, começo a compreender que, quando aos 19 anos de idade te deixei, eras ainda uma estranha para mim.

 

É interessante a relação de Simenon com a mãe, sabemos que Simenon deixou centenas de livros escritos, sentava-se numa cadeira, punha o casaco nas costas e escrevia 80 páginas de seguida, mas no dia em que a mãe morreu, ele deixou de escrever. E esta figura da mãe do escritor foi de facto ao mesmo tempo um obstáculo e um motor da sua própria escrita. Com graça, ele recorda que a mãe nunca acreditou que ele conseguiria ganhar a vida como escritor e, sempre que se encontravam, ela perguntava-lhe se ele tinha muitas dívidas e se precisava de ajuda financeira.

 

Recordo o livro "Une Femme" ("Uma Mulher", tradução livre) de Annie Ernaux, que ganhou o Prémio Nobel da Literatura no corrente ano. O livro começa assim: minha mãe morreu, quer dizer que não voltarei a vê-la, nem escutarei mais a sua voz nem ela estará em lugar algum do mundo.

 

É talvez a prova mais difícil para um escritor, para uma escritora: transformar em história a própria mãe, a figura mais íntima, aquela que a cada momento foi o princípio de tudo. E conseguir fazê-lo sem omitir nada do que se viveu: nem a pobreza, nem as cicatrizes, nem a violência. E ao mesmo tempo arriscando contar, arriscando prolongar a força luminosa e a doçura infinita de um incomparável amor.

 

Lídia Jorge, numa entrevista recente sobre este romance, diz: escrevi este livro sob o eco da voz da minha mãe. Parece que acontece assim, há muitos escritores que, quando a mãe ou o pai partem, fazem uma espécie de incursão num outro registo e acabam por falar de uma coisa muito mais íntima do que até aí tinham falado. Isto de trazer a morte e a ausência da mãe à literatura faz-nos pensar como a literatura determina que a vida do escritor seja um pouco aquela que Carlos Drummond de Andrade recorda naquele verso tão belo ("Tarde de Maio"): "Como esses primitivos que carregam por toda a parte o maxilar inferior de seus mortos." 

 

"Contar a história dos últimos"

 

E é assim que abrimos este livro. Porém, se a mãe e a sua memória são um elemento central desta magnífica narrativa, é importante ouvir também aquilo que diz Lídia Jorge, dizendo: peço que leiam como uma personagem ficcionada e que deixem para mim saber qual a distância entre a verdade e a realidade. Temos de ler este livro como uma ficção, não apenas como a história da mãe, mas como a história de todas as mães, não apenas a história das grandes figuras, mas com a ousadia comum na literatura da Lídia Jorge: a literatura a propósito dos últimos.

 

Neste livro encontramos um debate muito interessante entre a mãe e a filha escritora, sobre o material da escrita. A mãe defendia que a filha deveria tratar de personagens interessantes, de gente honrada e figuras de primeira categoria, de factos relevantes que fazem a história. E não compreendia a opção da filha, dizendo: os teus livros são o oposto. "No conjunto, os teus livros são um vale escavado num deserto repleto de gente pobre, rotos, descalços, abandonados, loucos, imigrados sem eira nem beira, imigrantes sem lugar onde caírem mortos, raparigas feias que todos enjeitam, pelintras de todo o jeito, gente assassinada, gente se atira à água para morrer, para o destino em troca de salvar os filhos, gente sem religião, sem-abrigo, sem pátria, sem casa, sem modos nem figura. E eu só me pergunto, porque te sentes atraída por esse tipo de criaturas, figuras que não se levantam do chão, miseráveis entre os miseráveis. Ora diz-me, quem gosta de lidar com a vida dos miseráveis? As tuas personagens parecem os discursos para os esfarrapados que São Francisco de Assis visitava."

 

De facto, é belíssimo e comovente ver que Lídia Jorge conta a história da sua mãe mantendo-se fiel àquilo que é o programa da sua literatura, que é contar a história dos últimos. E é com esta chave que entramos num espaço ficcional que é este "Hotel Paraíso", esta residência para idosos, que claramente, desde a denominação, funciona ironicamente. O paraíso é aquilo que é eterno, o hotel é uma residência efémera, um lugar transitório. Então, juntam-se estas duas coisas numa espécie de tragédia que é a travessia do Homem sobre a Terra. 

 

"Ganhar o ouvido dos outros"

 

Neste lar de idosos, percebemos o que é a condição humana, e Lídia Jorge leva-nos a uma meditação próxima, com uma lente engrandecida, sobre aquilo que um homem, que uma mulher, passam até ao fim, e percebemos aquilo que diz Milan Kundera: que toda a vida do homem entre os seus semelhantes não é senão uma luta para se apoderar do seu ouvido. E todo este livro é no fundo uma espécie de grito, de chamada, de desejo de um encontro, de uma espécie de espera. Tantas vezes a personagem, a senhora Alberti, telefona ao genro, telefona à filha, durante a madrugada, para fazer perguntas absolutamente ingénuas, despertando-os do sono apenas para tentar escapar ao cerco da solidão e ganhar o seu ouvido.

 

Este desejo humano identifica-se com a nossa sobrevivência espiritual, de ganharmos o ouvido uns dos outros… Podemos ver isto não apenas nas grandes histórias, mas nas micro-histórias, nas situações da vida de todos os dias, e é isso que nos é contado na vida sem glória de um lar, na vida descrita como uma espécie de exílio, de não vida, onde as palavras são desautorizadas, onde os pedidos não podem ser tomados a sério, onde aquilo que se diz já quase não tem um valor humano…, mas continuam a ser palavras. É impressionante a força com que essa espécie de dicionário humano, desativado, é recolocado na literatura de Lídia Jorge. (...)

"A história de todos os velhos"

 

Entrando num lar da terceira idade, este livro propõe também uma recuperação aguda, exata, verdadeira, sobre uma tragédia contemporânea que nós não queremos ver, que é precisamente a perda de valor social que hoje os velhos têm nas nossas sociedades.

 

É claro, a decisão da senhora Alberti de ir para o lar, como ela confessa, foi um exílio escolhido, ela aceitou aquele destino, mas podemos pensar em que medida se trata de uma escolha, em que medida é uma imposição também dos nossos modelos de sociedade. Os velhos, nas esculturas arcaicas, morriam saciados de dias; hoje, os velhos morrem famintos deste ouvido, famintos desta presença, famintos deste contacto. (…) É também um grito que precisa de ser escutado, porque as nossas sociedades têm de se reconciliar com a velhice e este livro é também uma espécie de manifesto, uma espécie de murro no estômago, uma espécie de "conta a minha dor".

 

Quando a mãe de Lídia Jorge lhe pede para contar esta história, é também para contar a história de todos os velhos, do que é ser velho hoje neste quartel do século XXI, e é alguma coisa que, como sociedade, precisamos de ouvir. É claro que mesmo um inferno se pode tornar o "Hotel Paraíso", e aquele lugar onde a vida se estreita, onde a vida se reduz (…), torna-se também um lugar onde é possível reencontrar a vida ou encontrar uma aspiração de vida ou um desejo de vida.

 

Lídia Jorge é capaz de encontrar num lar de idosos o país, este país que nós não encontramos ainda nos jornais, que não encontramos na comunicação que nos chega todos os dias. A literatura antecipa, dando-nos o seu retrato e, de facto, naquele lar nós temos (…) um mar de imigrantes que trabalham com os nossos idosos, temos ali a porto-riquenha Mercedes, Francine, a romena, o marroquino Ali Abdu, o ucraniano Igor, temos essa personagem inesquecível que é a Lilimunde, brasileira que veio do Pará. Então, na literatura portuguesa, entram os imigrantes, e entram como figuras que nos empurram e que nos ajudam a mover. Quando a mãe está sentada na cadeira e já não consegue andar, essa cadeira é levada por todas estas pessoas. 

 

"Misterioso é o sentimento da misericórdia"

 

Quem é o protagonista do romance? Na leitura que faço e que proponho, o protagonista do romance aparece-nos no título, chama-se "Misericórdia". Talvez exista um ponto biográfico (…), mas evidentemente a reflexão que este romance propõe vai muito além disso (…). A situação é o momento de pandemia em que uma série de idosos foram os primeiros a morrer e a protagonista vê sair os corpos mortos daqueles que habitavam consigo, e vê que quem os transportava era uma das funcionárias do lar que parecia mais agressiva, mais dura. Desde as primeiras páginas, é colocada sob suspeita pela indiferença que aplica às vidas frágeis de quem se ocupa. Mas, ao carregar estes mortos como se fosse uma "Pietà", esta personagem, a alta Judite, espantou a senhora Alberti. "Pegava-lhes bem. Curioso. Passava com as residentes mortas ao colo com uma delicadeza que ninguém lhe reconhecia antes, quando todas nós a temíamos." E depois diz aquela que para mim é a chave do romance: "Misterioso é o sentimento da misericórdia, não tem hora marcada para entrar ou sair do ser humano."

 

A palavra misericórdia, etimologicamente, junta "miseratio" (miséria) e "cordis" (coração). Misericórdia quer dizer "um coração sensível à dor nos outros". Essa é a definição que aparece num texto antigo de Santo Agostinho, "A Cidade de Deus", no qual o filósofo escreve: a misericórdia é a compaixão que o nosso coração experimenta perante a miséria do outro, é o sentimento que nos compele socorrê-lo. É também a definição dada por Espinosa, que diz que a misericórdia é o amor que afeta o homem de tal modo que se alegra com o bem do outro e se entristece com o seu mal.

 

É misteriosa a misericórdia porque nós não sabemos quando ela sai ou entra no nosso coração, e este romance é um romance cru, duro, é um romance que conta como o amor é difícil: o amor entre uma mãe e uma filha é difícil, o amor vivido na terceira idade é também um amor difícil – e vemos, por exemplo, tantos encontros desejadíssimos entre a mãe e a filha que são encontros em que ambas se ofendem, ofendem-se porque, de repente, a misericórdia sai do nosso coração, e isso é uma coisa misteriosa, mas ao mesmo tempo há a surpresa de quando a misericórdia entra no nosso coração e transforma completamente as situações.

 

Este romance, que é um romance sobre a velhice, que é um romance sobre aquilo que todos vivemos na pandemia – e vivemos todos confinados como se vivêssemos no Hotel Paraíso – é ao mesmo tempo uma reflexão sobre aquele amor que todos os seres humanos experimentam (…). E, nestes tempos, dedicar um romance à misericórdia é um ato de insubmissão e é um ato de coragem civil, porque se há tema removido ou destratado pela história do pensamento ocidental é o da misericórdia, que está praticamente ausente do léxico filosófico ou emergindo nele apenas lateralmente. (…) Corremos o risco de nos tornarmos, sempre em grau mais avassalador, analfabetos da misericórdia. Esse analfabetismo tem um custo, pois é impossível não ver como nos faltam ferramentas interiores, e a misericórdia é uma das principais, e na qual podemos colocar a nossa esperança, para contrariar as dissonâncias da história presente.

 

Por isso, saúdo e agradeço a coragem de Lídia Jorge ao escrever, em contracorrente, esta espécie de manifesto sobre a misericórdia que nos implica e compromete a todos. Obrigado. 

 

(Transcrição e edição: Lúcia Crespo)

 

 

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