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Moçambique: Pérola sem brilho

Há dois anos, o futuro de Moçambique era pintado com cores promissoras, sobretudo por causa da descoberta de enormes reservas de gás natural. Hoje, o país vive um clima de incerteza por causa da guerra e da dívida oculta.

Ana Brígida
30 de Setembro de 2016 às 12:00
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Na Praça dos Trabalhadores, morada da estação de caminhos-de-ferro de Maputo, um polícia repara no turista que, do interior de uma carrinha "pick-up", tira fotografias a um dos edifícios mais emblemáticos da capital moçambicana. Com um gesto curto, ordena que a viatura encoste. De seguida, encaminha-se vagarosamente e, pela janela entretanto aberta, pede os documentos. Fala com docilidade para o condutor, num tom de reprimenda professoral.

- O senhor sabe que não pode parar no meio da via.

- Estava a mostrar a estação a estes meus amigos que são turistas.

- Está a dar um mau exemplo aos visitantes. O que é que eles vão dizer da nossa cidade quando voltarem à terra deles? Que se pode fazer tudo? Que não cumprimos o código? E não está a usar cinto de segurança...

- Não tinha nenhum carro atrás e parei só por um segundo para lhes mostrar a nossa linda estação.

- A identificação dos dois senhores, se faz favor.

[Olha para os passaportes e devolve-os sem comentários].

- Eu sei que fiz mal, mas não estava a incomodar ninguém.

- Não volte a fazer. Pode prosseguir.

A conversa decorre morna. O polícia, que nem é de trânsito, percebe que o condutor está habituado a estas abordagens. É moçambicano e fala tão docilmente quanto o polícia. Por essa razão, o polícia salta a habitual etapa do pedido velado de meticais, uma actuação recorrente quando o infractor é estrangeiro e fica-se pelo raspanete, sempre com um meio sorriso na boca.

- Tenha um bom domingo e não volte a parar no carro no meio da estrada porque dificulta a circulação.

- Um bom domingo para si também.

Um polícia extorquir dinheiro a um automobilista por razão nenhuma é um acto de corrupção? Teoricamente sim, mas a punição moral torna-se mais leve quando julgada levando em contra outros pressupostos.

O vencimento de um polícia em Moçambique é pouco superior ao que os três ocupantes da "pick-up" acabarão por gastar no almoço desse dia, seis mil meticais (68 euros). Ou seja, este tipo de comportamento pode ser tolerado pela disparidade de rendimentos existente em Moçambique.

A corrupção nos serviços do Estado é admitida pelo próprio Governo. Jorge Nhambiu, ministro da Ciência e Tecnologia de Moçambique, que participou na conferência EiD, um fórum global sobre identificação electrónica organizado pela empresa portuguesa Multicert, que teve lugar dias 19 e 20 de Setembro em Maputo, explicou a aposta do seu Governo nos meios electrónicos na administração pública com base neste pressuposto. "Uma das nossas grandes batalhas é a luta contra a corrupção e queremos diminuir ao máximo a intervenção dos humanos. Se diminuirmos isso, teremos vencido uma grande batalha", afirmou Nhambiu.


Apesar do veemente postulado do governante moçambicano, há ainda fenómenos por explicar na aplicação do dinheiro público. Um deles materializa-se nas ruas de Maputo, na forma de postes metálicos brancos, no topo dos quais repousam câmaras de filmar. Trata-se de um sistema de videovigilância que apareceu de repente na capital e cuja utilidade ultrapassa os limites do duvidoso. As câmaras estão lá, ninguém sabe quem as encomendou e sobram teorias conspirativas sobre os beneficiários de um negócio de milhões. João Matlombe, vereador dos Transportes e Trânsito, citado pelo jornal Folha de Maputo, disse que esta medida visa reduzir os índices de criminalidade que se registam na cidade e também na zona da Matola, mas reconheceu que o projecto não havia sido desenhado pelo município. Na mesma altura, em Junho deste ano, Orlando Mundamane, porta-voz do Comando da Polícia, afirmava que as forças policiais não tinham qualquer projecto de videovigilância em curso. Um mês depois, o ministro do Interior, Basílio Monteiro, assumiu o projecto em nome do Governo, mas não explicou o custo do mesmo nem a identidade das empresas privadas envolvidas, abrindo espaço a enredos conspirativos.


Um sistema de videovigilância que está a ser instalado nas ruas de Maputo abre espaço para enredos conspirativos baseados neste duvidoso investimento.


A rocambolesca história do sistema de videovigilância, contada à mesa de um restaurante de Maputo, é o embrulho para um problema de fundo, o da dívida oculta moçambicana e as suas repercussões na economia do país. A que se junta outro, ainda mais grave, a manutenção do conflito armado entre o Governo e a Renamo (Resistência Nacional de Moçambique), liderada por Afonso Dhlakama, que não aceita os resultados das eleições de Outubro de 2014, as quais deram a vitória à Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) e ao seu líder, Filipe Nyusi. "Restaurar a paz" é a condição essencial para relançar o desenvolvimento do país, resume ao Negócios o economista de uma instituição financeira moçambicana que prefere manter o anonimato.

Uma tarefa árdua, atendendo à tensão histórica existente entre a Frelimo e a Renamo. Um empresário português a viver em Maputo ilustra a complexidade deste processo com o facto de nas línguas autóctones - que são oito - não existir a palavra "adversário", mas apenas a de "inimigo", circunstância que dificulta o diálogo. Esta semântica belicista encontra conforto nas palavras do Wande-Wane Bedford, coronel das forças armadas do Governo, que conduziu os jornalistas numa visita ao quartel de Nemagawa, antiga base da Renamo da Gorongosa. "Nós estamos aqui com uma missão clara, a de perseguir todos os bandidos armados. A política é para os políticos".

O conflito militar persiste, apesar dos esforços da mediação externa e das promessas do presidente moçambicano. "A via escolhida por todos nós é o diálogo", declarou solenemente Filipe Nyusi durante a sua estada em Nova Iorque, na terceira semana de Setembro, para participar na 70ª cimeira das Nações Unidas. Em Maputo, a perspectiva é outra. Fernando, vendedor de artesanato no Parque dos Continuadores, resume a situação com simplicidade, enquanto vende uma pulseira de miçangas: "a vida está mal, eles não se entendem e o povo sofre".

A venda de um batik acaba numa garrafa de água

Na Televisão de Moçambique, faz-se passar outra mensagem, em forma de anúncio. "Já fomos um dos países mais pobres do mundo, agora somos um país promissor. O país avança com a vontade do povo e sob a liderança do nosso presidente". Um empresário moçambicano que prefere não dar a cara vê a realidade de outro prisma, diz que o país "está em crise" e considera Nyusi um líder fraco que foi colocado no poder pelo anterior presidente, Armando Guebuza. A crise diagnosticada pelo empresário é confirmada pelo economista já referido. Com a "persistente tensão político-militar", o país regista, desde 2014, uma queda acentuada do investimento directo estrangeiro, sendo que "o clima de incerteza, a quebra de confiança e a falta de transparência na governação" têm um "impacto nocivo e directo" nos indicadores macroeconómicos. Um exemplo. O actual quadro de instabilidade faz com que estejam suspensos investimentos de três mil milhões de dólares no porto de Nacala e muitos cidadãos estrangeiros, portugueses incluídos, têm saído do país.


Em Maputo, onde antes havia falta de oferta imobiliária, sobejam agora as casas e os escritórios para alugar. Há um, dois anos, o arrendamento de um apartamento no centro da capital custava três mil euros/mês, nos dias que correm é possível fechar negócio por 600 euros. Uma situação que tem um efeito dominó. Os estrangeiros, quando alugavam casa, criavam também postos de trabalho ao recorrer, por exemplo, à contratação de empregadas domésticas, pelo que a sua partida acabou também por criar desemprego e aumentar a tensão social.

Há casos tocantes, como o de Leonel. À porta do restaurante Cristal, começa por tentar vender batikes, pinturas em tecido com temáticas africanas. A seguir, pede que lhe ofereçam a comida que sobrar da refeição e acaba por se contentar com uma garrafa de água de litro e meio. Em todos os pedidos de Leonel, sobressaem dignidade e bons modos. Pressente-se uma resignação que o tempo pode transformar noutra coisa. E qual será o futuro próximo de Leonel, atendendo ao vaticínio desanimador do citado economista: "a situação vai piorar antes de melhorar". O Negócios quis obter o retrato do país, pintado pela voz oficial, mas o pedido de uma entrevista ao primeiro-ministro do país, Carlos Alberto do Rosário, apesar das reiteradas solicitações, ficou sem resposta.

Há dois anos, Moçambique era de facto o país promissor que a Televisão de Moçambique apregoa. Agora não é. Há dois anos, com a queda do preço do petróleo, as grandes sociedades mineiras que extraem carvão na região de Moatize começaram a reduzir a sua actividade. As empresas que apostaram no gás natural, sobretudo na região de Cabo Delgado, também abrandaram os investimentos, pela combinação da queda do crude e do conflito armado que se vive no centro de país, e a estimativa agora é a de que Moçambique só começará com GNL (gás natural liquefeito) em 2021, retardando assim o impacto desta actividade na economia nacional. E a portuguesa Navigator, que tinha projectado um investimento na área florestal em Moçambique avaliado em três mil milhões de euros, abrandou agora a sua execução.

No relatório e contas relativo ao primeiro semestre de 2016, datado de 1 de Setembro, a Semapa, "holding" que detém a Navigator, escreve que está "a desenvolver um processo de reflexão relativamente ao ritmo de evolução do projecto em Moçambique, sobretudo ditado pela evolução do actual contexto político-social (que sofreu um agravamento significativo no último semestre), mas que reconheça também as exigências de desenvolver uma operação silvícola de grande dimensão no país". Mais à frente, a Navigator é esclarecedora: "a situação político-económica do país é instável, o que traz desafios acrescidos ao projecto, ao nível da segurança de todos os que nele estão envolvidos e da garantia de abastecimento dos produtos, materiais e serviços necessários".

A vida mudou em dois anos. Para pior

Há dois anos, as organizações internacionais consideravam Moçambique um país fiável, mas esta percepção foi seriamente danificada com a descoberta, em Abril deste ano, de uma dívida oculta de 1,4 mil milhões de dólares das empresas públicas Ematum (Empresa Moçambicana de Atum), Proindicus (segurança marítima) e MAM (Mozambique Asset Management) com aval do Estado, o que levou a que o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) suspendessem o financiamento ao país.

Os dois nós que continuam a apertar a futuro do Moçambique são a paz e a dívida. E, sem desatar o primeiro, a economia permanecerá refém da instabilidade política que daqui resulta. "Se não há paz, não haverá condições para resolver os problemas que o país enfrenta" sintetizou Mario Raffaelli, nomeado pela União Europeia para mediar o conflito entre o Governo e a Renamo, no passado dia 25 de Setembro, por ocasião do 52.º aniversário do início da luta armada contra o colonialismo português.

Mas, para isso, é preciso arrepiar caminho. Após Joaquim Chissano ter deixado a liderança do país, em 2005, o Governo optou por uma atitude de marginalização da Renamo e do seu presidente, Afonso Dhlakama. "Durante 10 anos, Guebuza (o sucessor de Chissano) nunca falou com Dhlakama e Nyusi é um homem de mão de Guebuza", comenta um empresário moçambicano, sob anonimato. Uma leitura perfilhada por Graça Machel. "Se nós tivéssemos persistido nos princípios e na maneira dialogante que caracterizou a liderança do presidente Chissano, provavelmente não teríamos este actual conflito. Hoje vocês têm o desafio da busca de uma paz duradoura, voltem ao espírito de Chissano, procurem encontrá-lo, este é o desafio", afirmou Graça Machel perante uma plateia de estudantes que assistiam a um seminário organizado pelo Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI) em Maputo, subordinado ao tema "Samora Machel: Vida, Pensamento e Obra".


"Se tivéssemos persistido na maneira dialogante que caracterizou a liderança do presidente Chissano, provavelmente não teríamos este actual conflito", diz Graça Machel.

"A situação ainda vai piorar antes de melhorar", diz um economista de uma instituição financeira do país. A crise em Moçambique veio para ficar.


Na via paralela à da política, corre uma "crise económica" que contamina o país, salienta o economista ouvido pelo Negócios. "O índice de criminalidade está a aumentar, a instabilidade social é tremenda, os investidores ficam na incerteza, há empresas a encerrar, muitos despedimentos, e a tendência é para piorar", diz o referido interlocutor, perspectivando que a economia moçambicana só mostrará "alguns sinais de reanimação" no final de 2017, sobretudo por causa dos acordos para a exploração de gás natural que o Governo irá estabelecer com a Anadarko, a Eni, a Qatar Petroleum e a Exxon. "A carteira de investimentos em projectos de gás, para os próximos anos, é de 100 mil milhões de dólares". Este ano, o PIB de Moçambique crescerá apenas 3%, metade daquilo que tem acontecido na última década, uma circunstância que coloca mais pressão sobre o Governo do país.

Para já, Filipe Nyusi tenta resgatar a confiança das entidades que suspenderam a ajuda financeira a Moçambique na sequência da descoberta da dívida oculta, tendo-se comprometido com o FMI a desencadear uma auditoria às contas públicas, liderada pela Procuradoria-Geral da República, destinada a apurar a legalidade das garantias soberanas do Estado. O FMI, num comunicado datado de 25 de Setembro, defende ainda a necessidade do Governo moçambicano levar a cabo novas acções para a estabilização da economia e fazer esforços adicionais para a melhoria da transparência, em particular na auditoria internacional e independente das empresas financiadas por fundos que resultaram na dívida pública em causa.

Para os cerca de 23 mil portugueses que estão em Moçambique, em particular os que residem em Maputo, a vida continua a decorrer com normalidade. E os expatriados com quem se conversa estão satisfeitos e adaptados à cidade. Perversamente, quem recebe os ordenados em euros ou dólares ganhou poder de compra com a desvalorização do metical, enquanto os moçambicanos que recebem na moeda local sentem cada vez mais dificuldades devido ao aumento da inflação.


O ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, que visitou a Feira Internacional de Maputo no final do mês de Agosto, levou a mensagem de que é preciso "resistir a este momento menos positivo" da economia moçambicana e que as empresas devem apostar numa "perspectiva de longo-prazo". "Encontrei nas empresas portuguesas que estão cá, algumas delas há muitos anos e que estão cá para ficar, a perspectiva de quem percebe que há anos bons e menos bons e que é preciso continuar", declarou Manuel Caldeira Cabral.

Hélia Bila, que assina o editorial de 20 de Setembro do jornal Notícias de Moçambique, dá conta da urgência de um entendimento entre o Governo e a Renamo. "Os que vieram de fora para nos ajudar a resgatar a paz começam a demonstrar cansaço. Um dia, dar-nos-ão as costas e ficaremos envergonhados continuando a matarmo-nos uns aos outros."

Moçambique, conhecida como a pérola do Índico, precisa de ser polida pelos seus líderes para voltar a brilhar.




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