Notícia
Jorge Vassallo: Estamos obcecados com a felicidade, exactamente porque não a temos
Há oito anos, aventurou-se no projecto “Até Onde Vais Com 1000 Euros?”. Duas bicicletas e mil euros. Em África. Jorge Vassallo é líder de viagens da Nomad e um coleccionador de histórias. Muitas delas estão reunidas no livro “Indochina”.
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Ele diz que cresceu em cima de uma Vespa. E que as Vespas estão nos genes da família. Depois de conhecermos a história de Jorge Vassallo, somos os primeiros a dizê-lo: sim, ele cresceu em cima de uma Vespa! As viagens andaram sempre a rondar a família. Em miúdo, ele olhava para o mapa-mundo do tio e ficava desesperado. Tinha medo de não conseguir ir a todos aqueles países. "Jorge, tens oito anos, tens muito tempo", dizia-lhe a mãe. O filho estudou, foi "copywriter" em agências de publicidade, chegou a arrendar uma casa, deixou-a e foi deixando Portugal. Há oito anos, ele e o amigo Carlos Carneiro aventuraram-se no projecto "Até Onde Vais Com 1000 Euros?". Duas bicicletas, dois "miúdos" de 30 anos e mil euros. Em África. A partir daí, tudo mudou. Jorge Vassallo é hoje líder de viagens da agência Nomad, escreve no blogue fuidarumavolta.blogspot.pt, é um coleccionador de histórias e muitas delas estão agora reunidas no livro "Indochina", uma viagem pelo Vietname, Camboja e Laos.
Estou sempre a registar histórias, estou sempre a escrever, nem que sejam apenas quatro linhas no final do dia. E tenho cada vez mais histórias para contar. Sobre pessoas e lugares. Comecei a perceber que tinha uma colecção de histórias comigo. A Índia, por exemplo, fervilha, é um planeta à parte, é muito diferente e, por isso, qualquer acontecimento comum é uma história incrível. E isso nota-se na forma como escrevo. Até costumam dizer-me: "Jorge, vê-se logo que já chegaste à Índia. A tua escrita ganha outra magia e outro colorido." E isso só acontece porque estou, de facto, a sentir tudo aquilo. A Índia é um desafio constante, é tudo em ponto de exclamação, não há nada que seja bonito, é tudo lindo! Não há nada que seja sujo, é muito sujo! Não é colorido, é muito colorido! É como se as coisas tivessem um filtro que puxa por todas as cores.
Toda a Ásia puxa pelos nossos sentidos. Agora, estou apaixonado pela Birmânia, passo lá a vida. O país está a mudar muito, dizem que está a perder parte da sua tradição, mas todos têm direito à modernidade. Não fica bem na fotografia ter a Coca-Cola e o iPad no meio de um mercado tradicional? Claro que não fica, mas todos têm o direito de querer e poder ter tudo isso. O importante é o equilíbrio. Os birmaneses têm uma cultura muito forte e uma identidade bastante marcada, que têm sido, de certa maneira, preservadas até agora. Isso pode fazer com que o país se proteja e se adapte de outras maneiras. Uma das coisas mais espectaculares que tenho observado é a ideia da democracia e da liberdade, é algo que está mesmo a acontecer, com a San Suu Kyi, com setenta e tal anos, a levar o país para a frente. E esse entusiasmo sente-se nas pessoas. Ela é mesmo uma personagem fantástica.
Ir várias vezes aos mesmos lugares permite-me uma observação mais atenta. Numa primeira visita, ficamos apenas com uma fotografia do sítio. Só quando lá voltamos é que podemos viver realmente as suas histórias, sem algum deslumbre que pode distrair, sem algum medo que também pode distrair. Sempre que entramos num sítio novo, vem o deslumbre, o medo, o choque, coisas que tomam conta das nossas emoções e fazem com que nos apaixonemos - quando estamos a viajar, temos de estar apaixonados -, mas essa paixão é muito ingénua. Costumo dizer às pessoas que viajam comigo: primeiro, têm de se deixar conquistar pelo lugar e só depois é que podem tirar conclusões. Mesmo assim, pode ser prematuro. Estou sempre a desconstruir mitos. Por exemplo, estamos formatados para pensar que no Vietname toda a gente anda de chapéu, e é giro desmontar tudo isto, as pessoas são, acima de tudo, pessoas normais, têm filhos, têm pais, têm trabalho. As pessoas são pessoas.
Tenho a sensação de que é nos países mais simples que as pessoas encontram a felicidade, precisamente, nas coisas mais simples. E, nesse aspecto, a Ásia tem muito para nos ensinar. Estamos cada vez mais obcecados com a felicidade, exactamente porque não a temos, e então andamos sempre a procurá-la, a provocá-la, e parece que não é uma coisa natural. Acho que a espiritualidade acaba por estar mais presente na Ásia em milhares de pequenas coisas, é algo que flui ao longo do dia, não é um desvio. Já a nossa espiritualidade e religião parecem estar agarradas a rituais estanques. Estamos dispersos por tanta coisa e, ao mesmo tempo, somos tão rígidos na maneira como celebramos tudo, seja a espiritualidade, seja o trabalho, seja a sexualidade. É como se cada coisa precisasse de estar arrumada numa caixa.
Mas a verdade é que a minha identidade, o meu património e a minha herança católica passaram a ser mais fortes depois do contacto com várias religiões. Cresci numa família católica, ia à missa quando era miúdo, mas em adulto deixei, a pouco e pouco, de reconhecer essa herança. Só recuperei a ligação, sem me tornar propriamente uma pessoa religiosa, quando comecei a conhecer outras comunidades. Lembro-me de ir a uma mesquita com amigos, eu ficava cá fora e começava a rezar uma Ave Maria. Por um lado, à medida que aprendia mais sobre outras culturas, ia adoptando algumas dessas aprendizagens. Comecei a ficar um bocadinho mais budista, um bocadinho mais hindu, um bocadinho mais muçulmano, mas, curiosamente, fui ficando um bocadinho mais católico também. E, quando estou a expressar a minha espiritualidade ou quando estou num ambiente religioso, sei que sou católico e que o meu património é esse.
Nas viagens, eu puxo muito pelas pessoas e até sou conhecido por dizer: "Ouve lá, mas tu pensas que estás de férias? Tu não estás em Cancun ou nas Seychelles, aqui, estás a viajar, e a seguir é que vais precisar de férias." Hoje em dia, as viagens de aventura estão muito disseminadas e as pessoas valorizam o lado da experiência. Mas algumas querem a experiência só para o Instagram. E o meu papel passa também por "agitar" essas pessoas. É algo difícil, mas é um pouco isto que distingue um líder de viagens de um guia de viagens. E também temos de saber gerir conflitos. Na viagem da Indochina, que dura 20 dias, sei que o momento crítico acontece no final da segunda semana, quando as pessoas estão cansadas e têm menos tolerância para o desconforto. É nessa altura que vamos para o Laos. O Laos é uma paz de alma. Luang Prabang [no centro-norte do país] é uma cidade com uma energia espectacular. É a Sintra da Ásia.
Chego ao fim das viagens estafado. Fiz agora 40 anos e o "lado de cá" começa a pesar mais, e o "lado de cá" não é só Portugal, é também estar um bocadinho mais parado, ter um outro equilíbrio. Estou com a Nomad há sete anos e larguei a minha casa há uns 12. Antes disso, tinha um espaço arrendado, estava a trabalhar como "copywriter". Mas, quando comecei a viajar mais, arrendei um quarto e, de repente, estava cada vez menos em Portugal. Primeiro, larguei a casa porque não compensava e depois não vinha a Portugal porque também não tinha casa. Daí esta necessidade de reencontrar algum equilíbrio ou de o equilíbrio estar a mudar.
O projecto "Até Onde Vais Com 1000 Euros?" - Dois portugueses, duas bicicletas e mil euros -, há oito anos, foi um ponto de viragem na minha vida. Tanto eu como o Carlos Carneiro andávamos a relativizar o que é que era, afinal, um trabalho e queríamos uma alternativa, que passasse pelas viagens. Acho, pelo menos, que devemos tentar fazer aquilo que gostamos, e hoje existe uma busca mais consciente por parte das pessoas, o que não quer dizer que estejamos a conseguir ser mais felizes, mas ficámos tantos anos presos a amarras que chegámos a um ponto em que conseguimos dizer - Eu não quero ser engenheiro, quero ser cozinheiro! Vejo imensa gente a optar por soluções mais simples. Acho que não custa tentar, só vivemos uma vez.
O meu tio trabalhava em cruzeiros, ele ia de barco a muitos sítios e tinha um mapa-mundo. Eu era miúdo e olhava para aquele mapa, desesperado, a pensar que não iria conseguir ir a todos aqueles lugares. E a minha mãe dizia: "Ó Jorge, tens oito anos." A minha família sempre viajou muito e o meu pai andava de Vespa com a minha mãe por toda a Europa, atravessaram vários países. Há dois meses, o meu irmão Diogo foi para a Noruega de Vespa. No ano passado, eu fui para a Índia, também comprei uma Vespa e estive três meses a viajar assim, fiz cinco mil quilómetros. Acho que as Vespas estão nos genes da família. O meu pai era coleccionador e, em casa dele, há várias. Acho que cresci em cima de uma Vespa...!
Estou sempre a registar histórias, estou sempre a escrever, nem que sejam apenas quatro linhas no final do dia. E tenho cada vez mais histórias para contar. Sobre pessoas e lugares. Comecei a perceber que tinha uma colecção de histórias comigo. A Índia, por exemplo, fervilha, é um planeta à parte, é muito diferente e, por isso, qualquer acontecimento comum é uma história incrível. E isso nota-se na forma como escrevo. Até costumam dizer-me: "Jorge, vê-se logo que já chegaste à Índia. A tua escrita ganha outra magia e outro colorido." E isso só acontece porque estou, de facto, a sentir tudo aquilo. A Índia é um desafio constante, é tudo em ponto de exclamação, não há nada que seja bonito, é tudo lindo! Não há nada que seja sujo, é muito sujo! Não é colorido, é muito colorido! É como se as coisas tivessem um filtro que puxa por todas as cores.
Toda a Ásia puxa pelos nossos sentidos. Agora, estou apaixonado pela Birmânia, passo lá a vida. O país está a mudar muito, dizem que está a perder parte da sua tradição, mas todos têm direito à modernidade. Não fica bem na fotografia ter a Coca-Cola e o iPad no meio de um mercado tradicional? Claro que não fica, mas todos têm o direito de querer e poder ter tudo isso. O importante é o equilíbrio. Os birmaneses têm uma cultura muito forte e uma identidade bastante marcada, que têm sido, de certa maneira, preservadas até agora. Isso pode fazer com que o país se proteja e se adapte de outras maneiras. Uma das coisas mais espectaculares que tenho observado é a ideia da democracia e da liberdade, é algo que está mesmo a acontecer, com a San Suu Kyi, com setenta e tal anos, a levar o país para a frente. E esse entusiasmo sente-se nas pessoas. Ela é mesmo uma personagem fantástica.
Tenho a sensação de que é nos países mais simples que as pessoas encontram a felicidade, precisamente, nas coisas mais simples. E, nesse aspecto, a Ásia tem muito para nos ensinar. Estamos cada vez mais obcecados com a felicidade, exactamente porque não a temos, e então andamos sempre a procurá-la, a provocá-la, e parece que não é uma coisa natural. Acho que a espiritualidade acaba por estar mais presente na Ásia em milhares de pequenas coisas, é algo que flui ao longo do dia, não é um desvio. Já a nossa espiritualidade e religião parecem estar agarradas a rituais estanques. Estamos dispersos por tanta coisa e, ao mesmo tempo, somos tão rígidos na maneira como celebramos tudo, seja a espiritualidade, seja o trabalho, seja a sexualidade. É como se cada coisa precisasse de estar arrumada numa caixa.
Mas a verdade é que a minha identidade, o meu património e a minha herança católica passaram a ser mais fortes depois do contacto com várias religiões. Cresci numa família católica, ia à missa quando era miúdo, mas em adulto deixei, a pouco e pouco, de reconhecer essa herança. Só recuperei a ligação, sem me tornar propriamente uma pessoa religiosa, quando comecei a conhecer outras comunidades. Lembro-me de ir a uma mesquita com amigos, eu ficava cá fora e começava a rezar uma Ave Maria. Por um lado, à medida que aprendia mais sobre outras culturas, ia adoptando algumas dessas aprendizagens. Comecei a ficar um bocadinho mais budista, um bocadinho mais hindu, um bocadinho mais muçulmano, mas, curiosamente, fui ficando um bocadinho mais católico também. E, quando estou a expressar a minha espiritualidade ou quando estou num ambiente religioso, sei que sou católico e que o meu património é esse.
Nas viagens, eu puxo muito pelas pessoas e até sou conhecido por dizer: "Ouve lá, mas tu pensas que estás de férias? Tu não estás em Cancun ou nas Seychelles, aqui, estás a viajar, e a seguir é que vais precisar de férias." Hoje em dia, as viagens de aventura estão muito disseminadas e as pessoas valorizam o lado da experiência. Mas algumas querem a experiência só para o Instagram. E o meu papel passa também por "agitar" essas pessoas. É algo difícil, mas é um pouco isto que distingue um líder de viagens de um guia de viagens. E também temos de saber gerir conflitos. Na viagem da Indochina, que dura 20 dias, sei que o momento crítico acontece no final da segunda semana, quando as pessoas estão cansadas e têm menos tolerância para o desconforto. É nessa altura que vamos para o Laos. O Laos é uma paz de alma. Luang Prabang [no centro-norte do país] é uma cidade com uma energia espectacular. É a Sintra da Ásia.
Chego ao fim das viagens estafado. Fiz agora 40 anos e o "lado de cá" começa a pesar mais, e o "lado de cá" não é só Portugal, é também estar um bocadinho mais parado, ter um outro equilíbrio. Estou com a Nomad há sete anos e larguei a minha casa há uns 12. Antes disso, tinha um espaço arrendado, estava a trabalhar como "copywriter". Mas, quando comecei a viajar mais, arrendei um quarto e, de repente, estava cada vez menos em Portugal. Primeiro, larguei a casa porque não compensava e depois não vinha a Portugal porque também não tinha casa. Daí esta necessidade de reencontrar algum equilíbrio ou de o equilíbrio estar a mudar.
O projecto "Até Onde Vais Com 1000 Euros?" - Dois portugueses, duas bicicletas e mil euros -, há oito anos, foi um ponto de viragem na minha vida. Tanto eu como o Carlos Carneiro andávamos a relativizar o que é que era, afinal, um trabalho e queríamos uma alternativa, que passasse pelas viagens. Acho, pelo menos, que devemos tentar fazer aquilo que gostamos, e hoje existe uma busca mais consciente por parte das pessoas, o que não quer dizer que estejamos a conseguir ser mais felizes, mas ficámos tantos anos presos a amarras que chegámos a um ponto em que conseguimos dizer - Eu não quero ser engenheiro, quero ser cozinheiro! Vejo imensa gente a optar por soluções mais simples. Acho que não custa tentar, só vivemos uma vez.
O meu tio trabalhava em cruzeiros, ele ia de barco a muitos sítios e tinha um mapa-mundo. Eu era miúdo e olhava para aquele mapa, desesperado, a pensar que não iria conseguir ir a todos aqueles lugares. E a minha mãe dizia: "Ó Jorge, tens oito anos." A minha família sempre viajou muito e o meu pai andava de Vespa com a minha mãe por toda a Europa, atravessaram vários países. Há dois meses, o meu irmão Diogo foi para a Noruega de Vespa. No ano passado, eu fui para a Índia, também comprei uma Vespa e estive três meses a viajar assim, fiz cinco mil quilómetros. Acho que as Vespas estão nos genes da família. O meu pai era coleccionador e, em casa dele, há várias. Acho que cresci em cima de uma Vespa...!