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Jorge Calado: Toda a gente sabe que a última palavra de "Os Lusíadas" é "inveja"

Sempre preferiu o campo à praia, os bosques e vinhas de Rio de Mouro, onde debaixo de uma pedra podia encontrar um lacrau, onde viu um gato com orelhas pontiagudas, que afinal não era um gato. Ele era um miúdo na idade dos porquês. Continua a sê-lo. Cartazes de cinema e pilhas e pilhas de livros. De física, de química, de matemática, de tudo. Assim é o seu gabinete no Instituto Superior Técnico (IST). Ele é o homem das ligações. À palavra "nuvem", tanto associa o nome do meteorologista Luke Howard como o do poeta Percy Bysshe Shelley". Apaixonado por ópera e fotografia, é crítico cultural do jornal Expresso. Lançou agora o livro "Limites da Ciência". Licenciado em engenharia química pelo IST e doutorado em química pela Universidade de Oxford, é professor catedrático de química-física do instituto e catedrático adjunto de engenharia química da Universidade de Cornell. Mas não gosta de títulos. Do senhor doutor para aqui, senhor doutor para acolá. "Um grande amigo meu dizia: 'Portugal é um país bom para quem quer ser importante'".

14 de Novembro de 2014 às 12:01
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Em miúdo, mais do que a praia, fascinava-me o campo, a sua diversidade. As árvores eram diferentes, as flores eram diferentes, a bicharada era diferente. Eu passava férias em Rio de Mouro que, na altura, era uma aldeiazita cheia de bosques e vinhas. Um tipo levantava uma pedra e saía de lá um lacrau. Eu achava muita graça. E até comecei a coleccionar bicharada. Um dia, vi um lince, fiquei muito espantado, parecia-me um gato, mas tinha aquelas orelhas pontiagudas, e eu nunca tinha visto um gato com orelhas pontiagudas.


Esta diversidade confundia-me e eu queria perceber por que é que as folhas dos pinheiros eram umas agulhas enquanto outras folhas eram grandes e recortadas. Nunca tive dúvidas de que queria seguir ciências. Até pensei em ser astrónomo. E lembro-me de ter um fascínio por uma vizinha, professora na Faculdade de Ciências que tinha trabalhado com um discípulo da Madame Curie sobre a questão da radioactividade. Diziam que ela tinha ajudado a fazer a bomba atómica! Eu via a senhora a subir as escadas e só pensava: 'também quero ser físico, ou químico'.

 

Apesar de ser velho, continuo a descobrir coisas novas. E, quando me interesso por qualquer coisa, documento-me, investigo, converso. E tentei sempre transmitir esse entusiasmo aos alunos. Quando ensinava disciplinas como química-física, recorria a todos os truques para eles ficarem deliciados. Queria transmitir-lhes a sensação de que estavam a descobrir um mundo novo e usava muitos paralelismos com o mundo das artes. Às vezes, lia um trecho de literatura para mostrar que determinado escritor estava a pôr em texto aquilo que interessava a um físico, a um químico ou a um matemático.


A história da ciência está cheia destes paralelismos. Por exemplo, no final do século XVIII, princípio do século XIX, nasce a meteorologia. E como é que nasce a meteorologia? Com a observação do céu e a classificação das nuvens, que é um rasgo imaginativo e científico tremendo. Afinal, as nuvens estão sempre a mudar. Ora parecem um pássaro a voar, ora pedaços de algodão, ora tiras estratificadas. Na mesma altura, os pintores começam a valorizar muito o céu. E as nuvens que pintam não são postiças, são realistas. E também há poetas que põem em verso o céu e as nuvens. Há um poema do (Percy Bysshe) Shelley que se chama "The Cloud". Quem narra o poema é a própria nuvem, a nuvem que anda por aqui e por ali e se altera, a nuvem que dá chuva e aumenta o caudal dos rios, a água que se evapora no Verão e vai outra vez para o céu.

 

A ciência deriva da curiosidade, a arte deriva da necessidade. As pessoas tornam-se artistas por necessidade, é qualquer coisa que têm mesmo de fazer. Na ciência, a motivação está em perceber de que é as coisas são feitas e como funcionam. Walter Isaacson, no livro "Os Inovadores" (sobre a invenção do computador pessoal e da internet), conclui que os progressos são maiores quando há mentes mais viradas para as artes a colaborar com mentes mais viradas para as ciências. Se um cientista tiver uma imaginação artística, tem todas as condições para triunfar.


Ciência e arte complementam-se e, em certos casos, até são a mesma coisa. Há um poema do John Keats em que ele diz que a verdade e a beleza são a mesma coisa, que a verdade é bela e que a beleza é verdadeira. E há a ideia do Einstein, muito conhecida: quando ele chegava a uma equação científica que achava que não era bonita, então era porque se tinha enganado.

 

A discussão é muito importante. Eu sempre fui provocador. Em Portugal, muitas vezes, no final de uma palestra, perguntamos: "há alguma pergunta?". E ninguém abre a boca. Não sei se as pessoas ficam com vergonha, mas, com oito ou nove séculos de história, já tivemos tempo de ultrapassar essa vergonha. De maneira que eu, às vezes, exagero. Para provocar uma reacção.


Não debatemos, não nos associamos, somos muito individualistas. E, em tempo de crise, teríamos tido mais força se nos tivéssemos associado. Também é um problema europeu - nos últimos anos, vários países europeus tiveram crises tremendas e a atitude lógica seria concertarem estratégias entre si. Mas qual foi a nossa atitude? "Nós não somos a Grécia". E depois, Espanha: "nós não somos Portugal".


Ao longo da minha vida, que já é longa, vejo que as pessoas se tornaram mais egoístas, que se viraram mais para dentro de si mesmas, quando têm problemas. Isolamo-nos, temos inveja. E a história da inveja é antiga. Toda a gente sabe que a última palavra de "Os Lusíadas" é "inveja".


Nós, portugueses, gostamos muito de puxar os nossos galões: eu é que sou o importante. É extremamente doentio esta história de os portugueses se tratarem com os títulos todos: senhor doutor para aqui, senhor engenheiro para acolá. Um grande amigo meu dizia: Portugal é um país bom para quem quer ser importante.


Estas são atitudes anticientíficas. O cientista, por natureza, não pode ser uma pessoa solitária e egoísta, gosta de partilhar as suas descobertas, gosta de as discutir, gosta de pôr as suas convicções à prova. Já Karl Popper dizia que o progresso da ciência se faz à custa da refutação. É assim é que se progride.


Errar pode ser tão bom e até melhor do que acertar. Mas é preciso aprender com o erro, o que, muitas vezes, não acontece em Portugal. As pessoas não questionam. Acomodam-se. E este acomodamento embota a curiosidade. Afinal, a curiosidade vem de uma certa insatisfação.


A nossa sociedade civil é muito fraca porque nos habituámos, há muito tempo, a viver à custa do Estado. Parece que gostamos de ter um patrão ou um papá. No fundo, era o que representava Salazar. Mas nós já éramos assim antes da ditadura. E tem tudo a ver com educação.


O problema é que nunca gostámos muito da educação, no sentido da aprendizagem, e cometemos erros tremendos, como a expulsão dos judeus e dos jesuítas. Aquando da preparação para a Expo 98, o então comissário Cardoso e Cunha fez uma palestra no Técnico para entusiasmar a malta nova. Ele disse uma coisa que eu nunca esqueci: Portugal só foi grande quando apostou na educação. E quando foi isso? Foi na época de D. João I, um rei mandatado pelo povo, que casa com Filipa de Lencastre, uma mulher absolutamente superior. Eles casam e fazem uma coisa rara na Europa do seu tempo: educam os filhos todos, até as princesas. E foi essa educação que se ramificou e que, no fundo, deu origem à aventura marítima. Mais tarde, veio D. Manuel, que expulsa os judeus de Portugal. A educação vem por aí abaixo e começa a decadência.


Em relação à ciência, a grande melhoria não aconteceu nos últimos vinte anos, mas sim nos anos 70, com Veiga Simão, e depois floresce com Mariano Gago. Hoje, estou muito pessimista em relação ao futuro da ciência no País. O que aconteceu com a avaliação dos centros de investigação pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia é um desastre. Como todas as coisas, é muito fácil destruir um sistema. Construí-lo leva gerações.

 

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