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Fernando Galrito: É possível aproximar as pessoas através da arte

Fernando Galrito é um dos fundadores e director do festival Monstra, que foi, durante anos, uma proposta de resistência e agora talvez esteja na crista da onda, misturando várias artes nas suas propostas. Está a decorrer em Lisboa até ao dia 26 de Março.

Miguel Baltazar
17 de Março de 2017 às 14:00
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O Festival Monstra começou há 17 anos quando quase não havia festivais de cinema na capital. Quando o cinema de animação era coisa só de miúdos. Quando não havia aplicações de telemóvel para animar objectos e primeiros rabiscos num papel. Quando tinha desaparecido da TV o Vasco Granja e já só havia filmes de grandes produções e "merchandising". A Monstra foi, durante anos, uma proposta de resistência e agora talvez esteja na crista da onda, misturando várias artes nas suas propostas, trazendo filmes de animação de vários lugares do mundo, insistindo em mostrar coisas difíceis que depois provam ser fáceis. Fernando Galrito é um dos fundadores e director do festival. Dá também aulas. É obrigado, ou obriga-se, a ver tudo o que se faz de novo e a pensar como dizer de novo aquilo que é velho. Nele, ainda há algo do miúdo a crescer a ver filmes e a roubar película, no tempo em que fazer um filme implicava uma força de vontade desarmante.

1. Quase sempre, todos os anos, quando recebo uma turma nova, apareço na sala com um pedaço de película nas mãos e pergunto aos alunos: Vocês sabem o que é isto? Oh, professor, é um bocado de filme! Eles normalmente associam ao filme fotográfico, porque lá em casa já encontraram película fotográfica que era dos pais. Eu digo-lhes sempre: o que eu tenho entre os dedos das minhas mãos é um segundo. Tenho aqui 24 imagens e, quando vemos um filme, passam 24 imagens num segundo, daí que o que eu tenho nas mãos é um bocado de película, é verdade, e cada quadradinho destes da película tem uma imagem ligeiramente diferente, mas estes bocadinhos todos, quando os vemos, são um segundo. A película tem esse lado: pode-se pegar no tempo quando se pega em película. É uma manipulação que não é possível no digital.

Com os meus alunos, faço muitas experiências com película, até porque herdámos da Fundação Gulbenkian um projector de 35 mm.

A película é um material que é estranho aos alunos, mas ao mesmo tempo tem um aspecto material, tem uma "patine", pode-se raspar a película, pode-se tirar uma parte, pode-se riscar, desenhar.

2. É engraçado como as coisas se vão encontrando ao longo da vida. Eu nasci em Samora Correia - uma vila relativamente pequena no fim do Ribatejo, uma zona de fronteiras entre a Estremadura, a grande urbanidade, mas também o Alentejo - no mesmo dia em que foi criada a primeira biblioteca fixa da Gulbenkian em Samora Correia. Mais do que a biblioteca em si, são sempre as pessoas que fazem as coisas, e essa biblioteca era dirigida por um casal com grande capacidade interventiva através da cultura. Esse casal criou então a Casa da Criança, onde comecei a ir desde muito novo, levado pelo meu irmão, que era cinco anos mais velho. Íamos aprender a desenhar, a pintar, a fazer marionetas, a musicar; tudo acontecia naqueles sábados. E, no final destas sessões, havia projecção de filmes.

Eles conseguiram, também da Gulbenkian, um projector de 16 mm e depois algumas embaixadas, do Canadá, de França, que eram as embaixadas que tinham mais material cultural, emprestavam filmes. Todas as sextas-feiras mandavam os filmes, que eram projectados e depois eram devolvidos na segunda-feira. Daí que eu tenha crescido a ver filmes experimentalistas, como os filmes do Norman McLaren, ainda antes de ver filmes da Disney.

Quem projectava os filmes era um amigo da nossa família. Depois passou a ser o meu irmão. Depois passei a ser eu. Eu, com 6 e 7 anos, passava filmes para os outros miúdos como se não fosse um deles.

Os filmes do McLaren eram desenhados directamente na película. Como a embaixada do Canadá era muito organizada, cada filme que mandavam semanalmente trazia uma amostra de 15 ou 20 metros de película em branco e depois é que começava o filme. E eu, todas as semanas, na ânsia de experimentar, tirava um bocadinho e aquilo era devolvido com 12 metros em vez dos 15. E em cada semana lá ia imitando o senhor McLaren. O meu primeiro filme é assim, desenhado directamente na película e, como tinha lá o equipamento, havia a hipótese de experimentar e de projectar. Uns anos mais tarde, o Vasco Granja fez um programa sobre a biblioteca fixa em Samora Correia e mostrou esse filme na televisão, talvez em 74.

3. Também havia um cinema local que passava tudo: desde os neo-realistas italianos até aos westerns, o Tarzan, o Joselito, tudo. De quinta a domingo. Eu tentava ir ver tudo. Até que propus arranjar película e desenhar a palavra intervalo, fazer uma pequena animação com a palavra intervalo, em troca de me deixarem ver os filmes. Na altura, havia dois intervalos, para as pessoas irem ao bar e porque, com aquelas máquinas de projectar, era necessário mudar mais do que uma vez as bobines.

Então, todos os meses fazia uma nova animação para o intervalo e podia ir ver todos os filmes que quisesse. Às vezes, via da cabina de projecção. Às vezes, os projeccionistas iam para o bar e eu passava a ser o projeccionaista. Era daquelas máquinas de projectar de arcos voltaicos, como se fosse uma máquina de soldar, aquela faísca muito grande que há entre o pólo positivo e negativo, e depois tinha um espelho. Era uma lâmpada fantástica, com uma projecção muito boa, mas era muito perigosa - e há todas aquelas histórias de incêndios nos cinemas. Havia ali uma chama, constantemente, atrás da película.

Eu era muito bom aluno em Matemática, Ciências, Física e, quando acabei aquilo, que era o equivalente ao 12.º agora, os meus pais acharam que eu ia para o Instituto Superior Técnico para ser um engenheiro. Eu apanhei um comboio e fui para França. Porque queria era estudar cinema e fazer coisas ligadas ao cinema.

4. Ainda passo muitas vezes nas minhas oficinas um filme do McLaren que é o "Blinkity Blank" e as pessoas ficam: ai, que história de amor tão bonita! E não estão pessoas aos beijos, não tem personagens humanizadas, são riscos, linhas. Mas está lá tudo para as pessoas sentirem. E têm o seu espaço para meterem a personagem lá dentro.

Gosto de mostrar filmes que são diferentes daquilo que habitualmente as pessoas vêem. Depois, gosto de mostrar filmes vindos de muitas latitudes, porque as pessoas começam a perceber: mas este gajo é iraniano e fez um filme tão sensível como um francês ou um alemão, este tipo também tem coração.

É possível aproximar as pessoas através da arte. E isso consegue-se com muita diversidade. E esse é um dos objectivos do nosso festival: mostrar várias formas de olhar para o mundo e de dizer as coisas.

O meu interesse enquanto fazedor de um festival é dar às pessoas todo o tipo de trabalho. E não estar a pensar: ah, em horário nobre não podemos passar este ou aquele filme, porque as pessoas não estão habituadas. Só não estão habituadas porque ninguém lhes dá. As pessoas vêm aqui, ou a outros festivais - o Play, o Doc, o Indie, tantos que também passam coisas diferentes -, e saem a dizer: que pena não haver mais coisas destas, assim diferentes.


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