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Belmiro de Azevedo, o empresário que soube deixar de estar

Aos 79 anos, Belmiro de Azevedo morreu no Porto, para onde foi viver logo aos 11 anos. Saiu de Marco de Canaveses, para onde voltava aos fins-de-semana sempre que podia. Fez crescer a Sonae. Entregou o testemunho aos filhos. E preparou a sua sucessão. Garantiu, em tempos, não ter medo de morrer.

30 de Novembro de 2017 às 11:34
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"Tenho de deixar de estar antes de deixar de ser". Belmiro de Azevedo antecipava à Visão, em Janeiro de 2010, a sua retirada da gestão executiva, a do dia-a-dia, que penaliza o corpo, e que é muito intensa e difícil, dizia. Belmiro de Azevedo sempre foi um homem preocupado com a forma física, mas também mental. "É preciso fazer ginástica do físico e do espírito". E, se o dizia, assim o fazia. Até poder, e o corpo o ter autorizado, continuou a ir ao ginásio. E também continuou a aprender. Sempre.

Mas o deixar de estar foi preparado. Primeiro, deixou funções executivas no grupo que fez crescer. Passou o testemunho ao filho, Paulo, em 2007, depois de uma OPA (oferta pública de aquisição) sobre a PT fracassada.


E em 2015 deixa todas as funções não executivas no grupo. Passaria, como disse, a conselheiro. Estaria sempre de olho, prometeu então. "Não quis fazer 70 anos como presidente da comissão executiva da Sonae e foi o que aconteceu". E aos 77 anos deixou de ser não executivo. O testemunho foi também passado a Paulo Azevedo. O filho assumira que uma das suas tarefas era a de "preservar os valores com que ele [o pai] fundou a empresa". Belmiro de Azevedo não fundou a empresa, mas é como se a tivesse fundado. Belmiro de Azevedo disse acreditar que tinha deixado a maior e mais importante empresa com longevidade em Portugal.

A posse de dinheiro cria a obrigação de o investir bem, de criar emprego. Sinto-me um curador desse dinheiro Expresso, 1999 

Preparou a sucessão com vários anos de antecedência. Passou as funções nas empresas - Sonae SGPS, Sonae Indústria, Sonae Capital. Paulo Azevedo, o filho do meio, é o "chairman" em todas. A filha Cláudia, a mais nova, é CEO da Capital. Paulo partilha a liderança executiva da SGPS com Ângelo Paupério. A indústria não tem gestão executiva da família. Nuno, o filho mais velho, não quis seguir a carreira de gestor no grupo do pai. Mas os três estão na Efanor, a "holding" familiar, que detém as participações nas várias "Sonae's".

Belmiro de Azevedo continuava nos órgãos sociais apenas da Efanor e da Fundação com o seu nome, ao lado da mulher, Maria Margarida, farmacêutica. Foi assim que esteve desde sempre: ao seu lado. Casaram na altura em que Belmiro se lançava na vida profissional, na Efanor. Tiveram três filhos. "Sou um sortudo porque os meus filhos são bem-educados, são trabalhadores". E a mulher era a "chefe" emocional, daí alguém ter um dia dito que se Belmiro era o "chief executive officer", Maria Margarida era a "chief emotional officer". Os filhos estudaram fora do país. Primeiro porque foram "apanhados" pelo 25 de Abril; depois por opção de Belmiro. Conheceram mundo. Também Belmiro tinha optado, depois de ter tirado o curso de Engenharia Química industrial no Porto, e já gestor, por amealhar conhecimento. Em 1973, rumou a Harvard. E não mais deixou de estudar.

A minha vida é uma história contra o desperdício. "Belmiro - História de uma vida", 2001

Sempre foi isso, também, que exigiu dos seus quadros. Formação contínua. "Assumi como estilo de vida pessoal e atitude empresarial do grupo que dirijo: 'be prepared', ou seja, prepare-se para decidir com pouca informação, com pouco tempo. Por mera coincidência, o acrónimo Sonae tem, em japonês, exactamente tal significado [preparação]", explicou o empresário a Filipe S. Fernandes, autor do livro "O Homem Sonae".

Tudo começou na gestão

Filho do carpinteiro Manuel de Azevedo e da costureira Adelina Ferreira Mendes, Belmiro nasceu em Tuías, Marco de Canavezes, em Fevereiro de 1938. Foi viver para o Porto aos 11 anos com o padrinho. E enquanto estudante entra na Efanor, que à época era uma têxtil. Hoje é o nome da "holding" familiar.

Assinatura do acordo de parceria entre a Impresa de Pinto Balsemão e a Sonae de Belmiro de Azevedo
Assinatura do acordo de parceria entre a Impresa de Pinto Balsemão e a Sonae de Belmiro de Azevedo Pedro Ferreira
Depressa mudou de rumo. A 2 de Janeiro de 1965 entra, pela primeira vez, na Sonae, a empresa de estratificados, que tinha sido criada a 18 de Agosto de 1959 por Afonso Pinto de Magalhães.

Belmiro entraria na Sonae em 1965, um ano que começou com emprego novo, e que terminou (literalmente) com o nascimento do segundo filho. Paulo Azevedo nasceu a 31 de Dezembro desse ano. Aquele que 50 anos depois o sucederia em definitivo na Sonae.

A gestão é uma arte simples que se reduz em bom senso. Belmiro - História de uma vida, 2001

Aos 26 anos, Belmiro de Azevedo chega, então, à Sonae, uma empresa que viu quase na falência, por causa do método de produção - fabrico de estratificados a partir de engaço de uva. "Fui encontrar engenhocas a mais e só não percebi como é que um banqueiro conseguiu pôr ali dinheiro, porque aquilo não tinha pés nem cabeça", por isso, sempre disse que o seu primeiro trabalho "foi desfazer aquilo tudo". Passou progressivamente do estratifite para o laminite. Já tinha sido detectada a falta de quadros técnicos, que começou a ser colmatada precisamente com a contratação, a convite de António Correia da Silva, de Belmiro de Azevedo. "Foi a pessoa certa na altura certa, com capacidade para avançar e ajudar a empresa na sua recuperação", diria mais tarde Correia da Silva, citado na biografia de Magalhães Pinto "Belmiro - História de uma Vida".

Chega à administração da Sonae e, em 1971, lança mão de 50% da Novopan. Começa a desenhar-se o tempo de Belmiro. E é aí que o 25 de Abril o apanha. É verdade que este acontecimento acabou por ser a oportunidade de Belmiro de passar de gestor a patrão.

1991 Presidente da República, Mário Soares, inaugura Cascaishoping
1991 Presidente da República, Mário Soares, inaugura Cascaishoping Lobo Pimentel
Pinto de Magalhães, apanhado no Brasil pelo 25 de Abril, ficou sem o banco - que detinha 20% da Sonae - e com os bens congelados. O Banco Pinto Magalhães foi nacionalizado, mas o IPE, empresa do Estado, não podia assumir essa posição. Ou seja, a maior parte do capital da Sonae ficava em "suspenso", sendo os trabalhadores, com 300 acções, os únicos a votar nas assembleias.

As empresas do Estado não chegavam a acordo com a comissão de trabalhadores da Sonae/Novopan para lhes vender as acções. E, a 28 de Fevereiro de 1978, Belmiro tinha então 40 anos, acontece o que ficou para a história como a "greve ao contrário", com os trabalhadores a lutarem contra a nacionalização. Durante quatro meses.

Tenho fama de rico, comportamento de pobre. Estou bem assim. Visão, 2010

A empresa tinha de continuar a trabalhar para os trabalhadores conseguirem receber os ordenados. O IPE saiu. As negociações passaram a decorrer com a UBP. Belmiro de Azevedo, mais tarde, disse a Maria Filomena Mónica, numa entrevista que está no livro "Os Grandes Patrões da Indústria Portuguesa", que até 1982 só tinha 17 acções, tendo reforçado posição apenas quando Afonso Pinto de Magalhães regressa a Portugal, desarrola os bens e volta à Sonae. Ficou com mais 16%, que valiam 20 mil contos. Afonso Pinto de Magalhães morreria dois anos depois, em 1984, e aí começaria a luta do poder com os herdeiros do banqueiro. Foi, pois, nos anos 1980 que Belmiro de Azevedo passou de gestor a dono. Mas já era, para os colaboradores, o líder.

Sonae durante a OPA à PT
Sonae durante a OPA à PT Pedro Aperta
A luta com a família Pinto de Magalhães só terminaria em 1994, quando as filhas - Amália, Fernanda e Aurora - do banqueiro aceitaram o acordo. Pelo meio, ficaram anos de litigância. Uma forma de estar da Sonae. Que lutava, até ao limite, pelo que considerava ser os seus direitos. E poucas vezes ficou a perder... dinheiro. Mesmo quando tinha de esperar anos a fio.

Dono da Sonae

Com Belmiro ao leme, em definitivo, da Sonae, a empresa inicia o seu processo de expansão. E entra em áreas novas. Uma delas foi a distribuição, que é hoje a maior do grupo, com os hipermercados Continente. Tudo começou em 1984 com uma parceria com os franceses da Promodès. O primeiro hipermercado em Portugal abriu em 1985, em Matosinhos.

É nesse ano que nasce a cartilha "Homem Sonae", escrita pelo próprio em 30 minutos. O perfil de quem está na Sonae: ou é líder ou candidato a líder; é um homem culto, evoluindo do seu estágio de competência técnica para o estágio de homem culto em geral; deve ter disponibilidade temporal e resistência física; deve ter disponibilidade mental para aceitar críticas vindas de superiores, pares ou subordinados. Deve reafirmar, replicar, mas saber evitar a retaliação sistemática; deve ter em alto apreço o trabalho dos seus subordinados; deve ser conhecido interna e externamente pela sua verticalidade e carácter; deve ter elevados critérios de exigência pessoal, com forte devoção às tarefas, embora procurando sempre um justo equilíbrio; deve ter um código ético e deontológico rigoroso em termos de valores; tem de aceitar o desafio da competição interna e externa e lutar por todos os lugares disponíveis que lhe sejam eventualmente oferecidos, mas também aceitar perder sem ressentimento; procura a excelência. Uma cartilha que Belmiro pedia aos trabalhadores para aplicarem, mas também ele a aplicava.

Belmiro de Azevedo com Cavaco Silva
Belmiro de Azevedo com Cavaco Silva Egídio Santos
Belmiro considerava a Sonae não uma escola de negócios, mas de empresários. Tal como Pinto de Magalhães, tinha sido "um 'entrepeneur' de alto risco", como Belmiro o descrevera, e como Belmiro o seguia. Assumiu o empresariado numa função de gestão e permitiu que outros dentro da Sonae o assumissem mais tarde.

A sucessão da Sonae foi a mais bem planeada que houve em Portugal. Público, 2013

Ao longo dos 50 anos em que esteve na Sonae, Belmiro de Azevedo correu riscos. Mas sempre garantiu ter sido independente. Uma independência que lhe valeu inimizades nos negócios. Algumas no espectro político. Quase nunca ganhou batalhas em que o Estado fosse o decisor. Não lhe prestava vassalagem e terá sido, por isso, penalizado.

Com Américo Amorim na conferência de imprensa sobre a península de Tróia
Com Américo Amorim na conferência de imprensa sobre a península de Tróia Paulo Duarte
A Torralta é uma excepção e hoje a Sonae é dona de Tróia. Ironia do destino, o arranque do projecto para Tróia é dado por José Sócrates, um estilo de governante que não agradava a Belmiro, e de quem mais tarde viria a ter novo capital de queixa, quando não conseguiu convencer o Estado na OPA lançada sobre a PT. A oposição do BES ditou a derrota da Sonae. Belmiro de Azevedo ainda sugeriu aos jornalistas que investigassem o que tinha acontecido na OPA. Foi, afinal, o Ministério Público que acusou José Sócrates, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro de terem recebido dinheiro de Ricardo Salgado para se oporem à oferta.

Não conseguiu ganhar a OPA, mas esse embate valeu a sucessão a Paulo Azevedo. Se provas faltassem, a oferta foi a derradeira. No mesmo ano em que a OPA morria aos pés dos accionistas da PT, Paulo Azevedo ascenderia à posição cimeira do grupo Sonae, ainda só com funções executivas. Belmiro continuou, nesse ano de 2007, como "chairman".

Fui sempre ousado e excessivamente confiante. Nunca saí do país. Público, 2013 

A OPA foi apenas uma das derrotas que Belmiro, quando fez 50 anos de Sonae, e saiu, assumiu. Mas falou de outros insucessos: a distribuição no Brasil e a privatização da Portucel. A distribuição do Brasil foi um projecto iniciado em 1989, com a compra de parte da CRD (da qual viria a assumir o controlo) e vendido mais tarde, em 2005, parte ao Carrefour e o maior número de lojas à Wal-Mart, gigantes deste sector, por mais de 600 milhões de euros. Foi a distribuição no Brasil, para onde foi aliada ao IPE, do Estado, que valeu a Belmiro uma audição no Parlamento, numa comissão de inquérito aos negócios do Estado, instigada por Marcelo Rebelo de Sousa, líder, então, do PSD. Em 1997, Belmiro marcou, então, a hora da sua audição no Parlamento: 8 horas. Belmiro insultou aquele que é hoje o Presidente, que ontem elogiou a liderança, determinação, visão de futuro e empenhamento social e cultural do empresário.

1989 Assembleia-geral do Banco Totta & Açores. Mesmo antes do regresso de Afonso Pinto de Magalhães a Portugal, já Belmiro de Azevedo comandava a Sonae e a Novopan, reforçando negócios e investimentos.
1989 Assembleia-geral do Banco Totta & Açores. Mesmo antes do regresso de Afonso Pinto de Magalhães a Portugal, já Belmiro de Azevedo comandava a Sonae e a Novopan, reforçando negócios e investimentos. Jorge Paula
A distribuição é hoje a maior área de negócio do grupo, mas foi também de derrota - não falada por Belmiro naquela carta nos 50 anos - a tentativa de fusão com a Jerónimo Martins, o que criaria um grande grupo nacional. A oposição, não oficial, voltou a ser do Estado. Pina Moura, à época ministro da Economia, terá dito que a concentração iria custar cara. Não se fez.

Se não for a mão-de-obra barata, não há emprego para ninguém.  Clube dos Pensadores 2014

Também com o Estado voltou a não ser sucedido na privatização da Portucel, à qual a Sonae concorreu e perdeu. Ganhou dinheiro, mas ficou sem a empresa que considerava complementar à sua actividade industrial. A Sonae detinha 25% da Portucel quando esta foi alienada pelo Estado, não concorreu à privatização porque considerava o modelo "hostil" aos seus interesses. Carlos Tavares era o ministro da Economia. Ganhou Pedro Queiroz Pereira. A Sonae vendeu a sua posição acima do preço a que o Estado alienou. Acabou por ganhar dinheiro com a Portucel. Mas ficou sem a empresa.

Em 2007, também não ficou com a PT mas conseguiria anos mais tarde uma vitória. A PT separar-se-ia da Multimédia. A Zon criada dessa cisão juntar-se-ia à Optimus e hoje é a desafiadora do incumbente no mercado de telecomunicações. Tal como a Sonae desejou. E agora conseguiu.

A banca e a bolsa

Belmiro escolheu, então, três derrotas. Não falou da banca que fica como o sector em que não conseguiu entrar. Apesar de a sua fortuna ter tido origem num banqueiro. Primeiro perdendo o BTA. Depois o BPA. Que lhe valeu guerras com Eduardo Catroga, então ministro das Finanças. Perdeu para o BCP. E nunca as relações com Jardim Gonçalves se estreitaram. Na biografia do ex-banqueiro, feita por Luís Osório, é dito que a passagem dos anos atenuaria o conflito.

2006 Condecoração de Belmiro pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio
2006 Condecoração de Belmiro pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio Miguel Baltazar
Nunca fez sucesso como banqueiro, mas fez sucesso como investidor na bolsa. Surpreendeu sempre o mercado de capitais. Em particular em 1987, quando, de uma assentada, lança sete OPV (dispersão em bolsa de empresas) para aproveitar benefícios fiscais. Investigações à actuação da Sonae acabaram arquivadas.

Era, afinal, o desafiador, como o próprio acabou por assumir à revista Visão, numa entrevista em Janeiro de 2010. Desafiou muito. Mas ganhou muito. Dinheiro, mas não só. Fica para a história como um dos maiores empresários portugueses de sempre, não apenas do pós-25 de Abril. O universo Sonae hoje factura mais de oito mil milhões de euros e está em quase todo o lado. Deixa fortuna. Mas nunca se considerou rico. "Tenho fama de rico, comportamento de pobre", disse, na mesma entrevista, à Visão. De facto, sempre lhe ficou colado o epíteto de avarento e de frugal.

Pior é sempre não decidir ou decidir a desoras.  Discurso 50 anos da Sonae 2015

Até disse que a única extravagância que tinha era comprar um carro caro de 14 em 14 anos. Ironizava. Desafiou e gostava de ser desafiado. Não se calava. E dizia o que queria e o que pensava. Doesse a quem doesse. Teve como missão deixar uma empresa com longevidade e bem preparada para o futuro. "Será responsabilidade daqueles que gerem agora esta casa fazer germinar as sementes e saber cultivar cada vez mais e melhores frutos", disse na carta de despedida aos trabalhadores, tendo presente o seu objectivo: "Criar uma empresa que dure muito mais do que três gerações".

2006 No dia em que foi anunciado que Paulo de Azevedo iria ser o novo presidente executivo da Sonae, em substituição do seu pai
2006 No dia em que foi anunciado que Paulo de Azevedo iria ser o novo presidente executivo da Sonae, em substituição do seu pai Egídio Santos
Paulo Azevedo é a segunda geração. O futuro já não lhe pertence. Nem queria. "A família é cada vez mais uma manta de retalhos, vão uns para cada lado. Por acaso, ainda somos uma família à moda antiga. Mas eles [netos] têm de ser aquilo que quiserem ser. Já cá não estarei para controlar isso. E seria estúpido querer controlar".

Já cá não estará. Belmiro de Azevedo morreu a 29 de Novembro de 2017, aos 79 anos. Recordado como grande empresário, é-lhe atribuída a fundação da Sonae, mesmo sem ser verdadeiramente o seu fundador.

Belmiro de Azevedo soube deixar de estar. Agora, deixou, também, de ser.



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