Notícia
Auto do Desespero da Cultura
Foram dos primeiros a sentir os impactos e não desejam ser os últimos na hora de receber apoios. Entre decisões políticas controversas, o setor da Cultura está disponível para conversar, dar propostas concretas. Se as contas não estiverem pagas, vai ser impossível pensar no futuro. Vai ser impossível criar.
Nem sempre os números conseguem, por si, espelhar uma realidade. Até porque quando se fala em quase 25 mil espetáculos que não se vão realizar ou em 98% de trabalhadores da Cultura com trabalhos cancelados, há por detrás desses números famílias reais.
Mal a pandemia começou a mostrar o real impacto, o setor disponibilizou (de forma gratuita) dezenas e dezenas de trabalhos para que, em casa, todos os portugueses vissem o tempo passar mais depressa. Mas, quase em simultâneo, a questão colocou-se para os artistas: como garantir o sustento daqui em diante? "Quantas vezes vimos os artistas oferecer o seu trabalho [por causas sociais]? De repente, é miserável a forma como o Ministério da Cultura está a cuidar dos seus artistas", lamenta a atriz e encenadora Sara Barros Leitão.
Desde logo, criaram-se movimentos distintos nos propósitos e nas gentes que os constituíam. O "Movimento Artesjuntxs" exigiu medidas de apoio e o pagamento de atividades canceladas. Mais de 1600 autores e artistas pediram aos responsáveis políticos que "Não cancelem a Cultura". Os "Invisíveis da Cultura" tentaram sair detrás do pano, com o receio de que muitos ficassem de fora dos apoios existentes.
"A grande questão é que esta crise está a trazer ao de cima as fragilidades mais profundas do setor, que nunca foram tratadas", aponta Cíntia Gil, membro da direção da Apordoc – Associação pelo Documentário. Em resumo: financiamentos que sempre foram insuficientes e uma política de apoio assente na produção e não no trabalho artístico como um todo.
UM FUNDO DE EMERGÊNCIA QUE, AFINAL, É UM CONCURSO
A tutela tem defendido que a Cultura será uma "ferramenta de relançamento económico" após a pandemia. E foi, nesse sentido, que lançou a 23 de março uma linha de emergência para o setor. Um milhão de euros para apoiar projetos: até 2500 euros para os artistas individuais e 20 mil euros para as entidades artísticas.
Depois da notícia, os agentes do setor logo perceberam que aceder ao dinheiro não ia ser fácil. É que estes valores estão sujeitos a candidatura, embora esteja prevista a prioridade para quem não recebe os habituais subsídios do Estado. Os que já recebiam esse apoio, mantêm-no.
"Esta linha de emergência falha redondamente: prazos apertados, sem formulário, imensas incongruências nos regulamentos. Temos de propor uma criação com todos os aspetos detalhados, como orçamento, calendarização ou fundamentos. Isto quando a obrigatoriedade da execução e apresentação é facultativa. Não faz qualquer sentido", explica o artista visual e "performer" João Pedro Fonseca.
Na prática, os artistas tiveram de entregar até ao dia 6 de abril novos projetos, novas criações. "São, na verdade, novas candidaturas. Isto significa que há artistas que não vão ser elegíveis e não vão receber financiamento", simplifica Sara Barros Leitão. Com o mundo de portas fechadas, há poucas alternativas à vista para quem faz da arte a sua vida.
A grande preocupação está nas estruturas mais pequenas, algumas com vincadas missões de intervenção social junto da comunidades socialmente mais frágeis. "Temos a perfeita noção que há uma impossibilidade de chegar a todos. Se nada dá para todos, temos de encontrar um caminho que seja o mais justo para todos", insiste o programador e produtor cultural Gui Garrido.
Uma das ideias vem, precisamente, de uma discussão que já está a ser tomada além fronteiras. Com o avançar da pandemia, o conceito de rendimento mínimo universal – que garante um valor mínimo para o pagamento das necessidades básicas – tem ganho novos adeptos. "A Cultura, como a Saúde ou a Educação, não pode passar por lógicas de mercado", reforça Cíntia Gil. Os valores das rendas, por exemplo, têm subido em flecha nos últimos anos. E o apoio de 438 euros previsto para os recibos verdes não será, em muitos casos, suficiente.
AS ESPERANÇAS QUE JÁ CHEGARAM AO TERRENO
Além da linha de apoio de um milhão de euros, os trabalhadores da cultura são abrangidos pelos mecanismos de proteção social criados pelo Governo, como o "layoff". Importa destacar contudo que, nesta área, os trabalhadores a recibos verdes são uma realidade vincada: assim, terão direito a um apoio de 438 ou 635 euros, calculado com base nos seus descontos.
Mas chegará esta garantia para acalmar quem só ganha se produzir? Para quem sabe que não terá trabalho, com o mesmo ritmo do passado, nos próximos meses? "Para criarmos e pensarmos no amanhã, temos de ter calma no agora", aponta Gui Garrido. No mesmo sentido têm seguido outras entidades – mas não tantas como o esperado.
A Fundação Calouste Gulbenkian criou um fundo de emergência de cinco milhões de euros, com um apoio financeiro de 2500 euros para artistas individuais e de 20 mil euros para estruturas de criação. Já a Fundação GDA lançou um fundo de um milhão de euros para assegurar "necessidades essenciais aos artistas". O Arte Institute, liderado pela portuguesa Ana Miranda, criou um palco "online" onde os artistas podem disponibilizar as suas criações. O público poderá pagar, através de doações, os valores que considera justos.
Marco Paiva, a par de muitos outros colegas de profissão, defende que é necessário um organismo que centralize todas as verbas de emergência para o setor cultural, venham elas do setor público ou privado. Seria depois esse organismo, avaliando as necessidades, a fazer a distribuição. "Não são só os artistas e técnicos. Há uma série de figuras que ficam desprotegidas", lembra o ator. O caso dos 23 profissionais do serviço educativo dispensados pelo Museu de Serralves é um dos exemplos que acaba, com frequência, referido por estes profissionais.
Mas é preciso voltar à esfera pública para perceber outros dois mecanismos que foram entretanto criados. A plataforma Portugal #Entraemcena pretende juntar artistas e mecenas no mesmo espaço virtual. A intenção é que, perante esta montra de trabalhos, haja entidades públicas e privadas a apoiar projetos com até 20 mil euros. Os profissionais ouvidos pelo Negócios dizem desconhecer os contornos do projeto, em particular como será feita a distribuição do dinheiro.
Nas últimas semanas multiplicaram-se também os relatos de artistas que tinham compromissos com salas de espetáculos, mas que não estavam a receber pelos trabalhos cancelados ou adiados. Com essas decisões, meses de incerteza face às contas que há para pagar. O Governo avançou com uma alteração ao Código dos Contratos Públicos e a Assembleia da República tratou do restante, ao aprovar duas ideias incluídas num projeto de lei do Bloco de Esquerda. Junto das entidades públicas, os espetáculos cancelados devem ser pagos como se tivessem acontecido. Já nos trabalhos adiados, pelo menos metade do valor deve ser saldado na data prevista.
O FESTIVAL DA DISCÓRDIA
Chama-se "TV Fest" e é, certamente, a medida mais polémica na resposta feita pelo Ministério da Cultura à pandemia. Um festival de música, transmitido pela RTP. Um milhão de euros – o mesmo valor da linha de emergência – para financiar 120 concertos virtuais. Os primeiros quatro nomes foram escolhidos por Júlio Isidro, histórico apresentador da televisão pública. Cada um dos artistas/bandas teria depois de escolher quem se seguia. "Uma rede", descrevia a ministra da Cultura, Graça Fonseca.
A resposta não se fez esperar. Uma petição pública, que em menos de 24 horas reuniu mais de 20 mil assinaturas, pedia o cancelamento do evento. "Um jogo de círculo fechado", defendem os peticionários como Gui Garrido, um dos mentores da iniciativa. Os artistas ouvidos pelo Negócios criticam as regras pouco claras do festival e, em especial, como seria feita a distribuição do dinheiro público pelas equipas técnicas dos músicos selecionados. "Não queremos que seja o Estado a fazer programação", acrescenta Sara Barros Leitão.
"É uma humilhação para a própria ministra. Um programa, com uma verba de um milhão, que foi cancelado porque só apoiava um setor da arte, a música, e com preferências por distribuição dos apoios", lamenta João Pedro Fonseca. Na tarde de quinta-feira, 9 de abril, o ministério decidiu suspender o evento. "Vamos repensar e perceber exatamente como manter este nosso objetivo de apoiar o sector da música e os técnicos e, ao mesmo tempo, dar a possibilidade às pessoas de receberem em sua casa música portuguesa", explicou Graça Fonseca à Lusa.
O setor da Cultura parece estar, irremediavelmente, dividido. Mas, acima de tudo, extremamente consciente do que poderá resultar deste tipo de decisões políticas. "Não se pode fomentar uma crise de valores", resume Gui Garrido.
FALTA DE VISÃO (OU DE RECURSOS?)
Ouvir. É este o verbo que os agentes culturais querem ver Graça Fonseca a praticar. "Basta que nos ouça. Todos os micro-setores têm propostas em cima da mesa", sintetiza Sara Barros Leitão. Para a atriz e encenadora, há uma "medida imediata: parar de segregar os trabalhadores da Cultura. O setor dos livros, por exemplo, ainda não teve uma única medida".
Há quem, como João Pedro Fonseca, peça que o valor previsto para o "TV Fest" seja distribuído pela comunidade artística. "Exigindo apenas os comprovativos das atividades culturais dos últimos meses. Seria um apoio de sobrevivência e não de criação", propõe.
Mas de uma sensação generalizada a ministra da Cultura já não se livra: a de que conhece mal o setor que tutela. "O que começa a parecer é que há um desconhecimento de fundo do sistema cultural e artístico", diz Marco Paiva. "Há todo um fluxo artístico que é ignorado e isso reflete-se, depois, nas preferências dos apoios", completa João Pedro Fonseca. A 15 de abril, a pedido do PAN, a ministra vai prestar esclarecimentos no Parlamento.