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Augusto Mateus: A questão-chave é reconhecer a Cultura como grande recurso estratégico

Ex-ministro da Economia, professor universitário e autor do estudo “A cultura e a criatividade na internacionalização da economia portuguesa”, Augusto Mateus reafirma a Cultura como instrumento privilegiado na melhoria da democracia e na sustentabilidade da qualidade de vida dos cidadãos.

Miguel Baltazar
14 de Abril de 2018 às 12:30
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O nosso mundo vai avançando numa trajectória de transformação cada vez mais profunda e cada vez mais rápida onde nunca foi tão relevante a utilização da Cultura e do conhecimento para produzir a sabedoria civilizacional, sem a qual essas transformações podem não ser plenamente aproveitadas, nos seus aspectos positivos, nem plenamente combatidas e mitigadas, nos seus aspectos negativos.

O próprio crescimento e desenvolvimento económico tem vindo a ganhar novas dimensões que colocam no centro dos processos de criação de riqueza quer a eficiência colectiva das redes de organizações e empresas quer a mobilização de recursos humanos não só mais qualificados, mas também mais competentes e criativos (capital humano), convergindo para a incorporação de conhecimentos científicos e tecnológicos mais avançados que vão fazendo desaparecer as simples mercadorias e fazendo aparecer e crescer os produtos, serviços, soluções e experiências diferenciados por uma nova relevância de elementos e factores intangíveis e imateriais.

Estas novas referências nos paradigmas mais efectivos de desenvolvimento económico e social vão abrindo as portas a um novo tipo de crescimento, o crescimento endógeno, que vai integrando crescentemente novas dimensões culturais e criativas, contribuindo para alimentar a construção de uma visão alargada da "Cultura", em que diferentes características comportamentais partilhadas por uma determinada comunidade - modos de vida, sistemas de valores, tradições e modelos de consumo - se juntam ao núcleo duro das artes e do património para alimentar jazidas de forte valor económico.

A questão-chave dos nossos dias não é, portanto, a de saber se a Cultura é "consumo" (de alguns, de muitos ou de todos) ou "investimento". A questão-chave é a de saber reconhecer a Cultura, ao lado da criatividade e do conhecimento, como grande recurso estratégico para o progresso económico e social num mundo onde a inovação e a digitalização se articulam estreitamente com a diversificação e a diferenciação. As sociedades mais desenvolvidas são as que mais protegem, incentivam e valorização os criadores e a propriedade intelectual.

A evolução recente das sociedades modernas, em especial das europeias, produziu, de facto, uma forte interpenetração entre a economia e a Cultura. O mercado penetrou a Cultura, integrando-a progressivamente em circuitos comerciais alargados de produção, distribuição e difusão, ao mesmo tempo que os conteúdos culturais moldam de forma cada vez mais relevante a produção, distribuição e consumo de bens e serviços económicos com peso crescente nos hábitos de consumo das populações.

Quando falamos de Cultura em termos da sua relevância económica, estamos, neste contexto, a falar de três grandes realidades que importa diferenciar.

A primeira, o núcleo duro das artes e do património, constitui um espaço de afirmação de bens e serviços públicos e semipúblicos de mérito onde os protagonistas centrais são os cidadãos portadores de direitos democráticos de acesso à Cultura.

A segunda, composta pelas indústrias culturais, constitui um espaço de afirmação de bens e serviços transaccionáveis, em que os protagonistas centrais são os consumidores portadores de hábitos e poderes de compra segmentados.

A terceira, composta por múltiplas actividades criativas, constitui um espaço de afirmação de competências e qualificações específicas onde os protagonistas centrais são os profissionais portadores de capacidades criativas diferenciadoras.

A promoção do domínio da(s) língua(s), seja a "língua da comunidade" (português, no nosso caso), como elemento central do património cultural e eixo de diferenciação e segmentação, seja a "língua da globalização" (inglês, na presente fase), como eixo de comunicação e conexão global, bem como das linguagens, nomeadamente as do relacionamento com as "coisas" e as "tecnologias" como intermediários do relacionamento com os "outros", mobilizando os nossos sentidos, sentimentos e capacidades cognitivas, revela-se decisiva, nos nossos dias, para vivificar a Cultura, suportando e alimentando as referidas três realidades.

Reconhecer a Cultura como recurso estratégico de uma democracia mais efectiva e participada e, simultaneamente, de uma economia mais competitiva e forte, geradora de maior valor, de maior sustentabilidade e de maior equidade humana e social, permite responder sem hesitações à vossa pergunta.

A Cultura não é um luxo ao serviço de poucos, é, ao contrário uma necessidade central do desenvolvimento individual e colectivo posta ao serviço de todos, de múltiplas e variadas formas e intensidades.

A despesa na Cultura, seja ela pública, seja ela privada, não constitui, no entanto, como qualquer despesa, sempre e necessariamente um investimento. Com efeito, só é investimento uma despesa orientada para o futuro, isto é, municiando vários ciclos sucessivos de actividade pela formação de capital, físico, humano e organizacional, que consegue "bater certo", que consegue responder com eficiência a necessidades efectivas de desenvolvimento.

Ora, na Cultura, como na Saúde ou na Educação, como na mobilidade ou na digitalização, como na indústria, nos serviços ou na agricultura, nem todas as despesas conseguem "bater certo", podendo mesmo, como sabemos, "bater errado"…

Em muito casos, o mais importante não é querer fazer o "Bem", mas antes conseguir fazer bem o "Bem"… No final, são sempre os resultados na qualidade da democracia e na competitividade partilhada da economia que determinam se temos ou não um verdadeiro investimento.


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