Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Notícia

António-Pedro Vasconcelos: “E se começássemos a falar dos “utentes da Cultura”?

Para o realizador de filmes como “O Lugar do Morto” e “Os Gatos Não Têm Vertigens”, a justificação para a intervenção do Estado na Cultura não deveria ser diferente da que fundamenta a intervenção na Saúde ou na Educação: são áreas vitais para os cidadãos, em que o mercado não assegura, por si, a igualdade de oportunidades.

Miguel Baltazar
14 de Abril de 2018 às 12:15
  • ...
Até hoje, nenhum governo teve uma ideia clara sobre o que deve ser o papel do Estado na Cultura. Se a defesa do Património é consensual (mesmo se, na prática, se cometem barbaridades), em relação às artes vivas, em 44 anos de democracia, nunca houve um programa claro (há proclamações gerais e medidas avulsas) nem um estudo (com excepção dos que foram encomendados a Augusto Mateus em 2010 e 2014 sobre as indústrias culturais, mas que ficaram na gaveta) que fundamente as "políticas da Cultura".

Em sectores que envolvem altos financiamentos, como o cinema e a TV (e onde o Estado, ao contrário do que se pensa, não investe um cêntimo), esses estudos deviam preceder qualquer medida sobre o sector. Mas não é isso que tem acontecido. Os ministros da tutela têm sido intelectuais (Cultura) e políticos (TV), mesmo se este Governo entregou, e bem, a tutela da RTP ao MC. Mas, para isso, era preciso que o ministro existisse. À falta de um programa, caber-lhe-ia estudar os dossiês e propor reformas fundamentadas e coerentes para o sector. Mas Castro Mendes limita-se a navegar à vista e a tentar desastradamente satisfazer lóbis ruidosos ou clientelas influentes.

Ora, a justificação para a intervenção do Estado na Cultura não devia ser diferente da que fundamenta a intervenção na Saúde ou na Educação: são áreas vitais para os cidadãos, em que o mercado não assegura, por si, a igualdade de oportunidades, e que exigem, por isso, financiamento público e regras que garantam a equidade no acesso a esses bens e serviços.

As políticas públicas são feitas para os cidadãos. Na Saúde, por exemplo, são feitas para os utentes da saúde, não para os médicos. Para termos bons serviços de saúde, precisamos de bons médicos, hospitais e universidades, mas os destinatários das políticas e dos financiamentos públicos são os utentes.

No cinema, à semelhança do que fez António Ferro com a sua "política do espírito", os destinatários directos dos financiamentos que o Estado gere - através de júris que nomeia para distribuir, segundo uma "política do gosto", as verbas que obriga os operadores a pagar - continuam a ser os artistas, não os cidadãos. O destino de uma indústria, que é também a primeira arte pop do século XX, está assim nas mãos de cinco indivíduos, onde imperam professores universitários, "especialistas", poetas, padres e críticos, que decidem o que dez milhões de portugueses merecem ver.

Os resultados desta aberração estão à vista: ao contrário do que se faz crer, e com excepção do Luxemburgo, Bulgária e Eslováquia, o cinema português é o que tem os piores índices de popularidade junto do seu público na UE: cerca de 2% contra uma média de 23% nos outros países. Mas, também em termos de projecção internacional, o nosso cinema é irrelevante: entre os candidatos aos Óscares de Melhor Filme Estrangeiro, há 25 países vencedores (incluindo Nepal, Costa do Marfim e Cazaquistão), em 56 nomeados. Nunca nenhum filme português foi sequer nomeado. Trinta países já venceram [o grande prémio em longa-metragem] um dos três grandes festivais - Cannes, Berlim ou Veneza -, incluindo Filipinas, Peru ou Bósnia. Portugal nunca.

Em 2015, durante um encontro com artistas, António Costa foi claro: "O MC não é um ministério para os agentes culturais, pelo contrário, é para o país. Ao Estado e ao governo não cabe escolher artistas nem ter uma política de gosto. Mas é obrigação do Estado tornar a Cultura acessível a todos."

Mas nem o seu próprio ministro o ouviu.

Tudo isto porque "críticos" que dão estrelas nos jornais criaram a ideia de que há um "cinema de autor" (o verdadeiro, que ninguém vê) e que precisa, por isso, de ser subsidiado, e um cinema que tem espectadores, relegado para a desprezível categoria do "cinema comercial"! Se os fôssemos levar à letra, em que categoria colocaríamos Chaplin, Hitchcock, Capra, Ford, Wilder, Fellini, Truffaut, Bergman e tantos outros autores geniais que conquistaram a adesão de milhões de espectadores?

Não será altura de mudar de paradigma e começar a falar dos direitos dos "utentes da cultura"?


Ver comentários
Saber mais António-Pedro Vasconcelos Cultura Saúde Educação Governo RTP Estado cinema Chaplin Hitchcock Capra Ford Wilder Fellini Truffaut Bergman Cannes Berlim Veneza
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio